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Saúde
Combinação de risco
Mulheres com transtornos alimentares são oito vezes mais propensas a serem alcoólatras ou dependentes de drogas
JULIANA CALDERARI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Aos 11 anos, Sueli (nome fictício) era uma
criança bastante ativa. Fazia natação, ginástica rítmica e até se envolvia
em competições. Seu peso era o
esperado para uma garota de
sua idade, mas, mesmo assim,
Sueli não queria comer.
"De manhã, minha mãe mandava o lanchinho para a escola,
mas eu não comia. No início, ele
embolorava dentro da lancheira. Depois, comecei a jogar fora.
À noite eu jantava, mas vomitava tudo", conta.
Sueli faz parte do grupo crescente de mulheres que, em algum momento da vida, desenvolverá algum tipo de transtorno alimentar -no caso dela, os
4% que sofrem de anorexia
nervosa. O dado é do Ambulatório de Bulimia e Transtornos
Alimentares do Instituto de
Psiquiatria do Hospital das Clínicas (Ambulim/IPq).
Seu drama alimentar se iniciou com uma anorexia com vômitos provocados. Mas não parou por aí. Com o repúdio aos
alimentos, veio o uso de álcool e
de remédios para emagrecer.
"Com 13 anos, comecei a fazer
regime. Estava pesando 67 kg
para os meus 1,68 m quando comecei a tomar remédio para
perder peso."
O álcool e as drogas psicoativas costumam ser usados para
aliviar a dor e a ansiedade causadas pela fome, mas o contrário também acontece. Alcoólatras -ou alcoólicos, termo preferido por entidades ligadas ao
tema- e dependentes químicos podem desenvolver transtornos alimentares.
Segundo uma pesquisa feita
com 80 pacientes do Programa
da Mulher Dependente Química (Promud/IPq), 56% das mulheres dependentes de álcool
ou de drogas que estavam em
tratamento tinham algum tipo
de transtorno alimentar.
Dessa porcentagem, 41% tinham transtorno do comer
compulsivo, 30% tinham bulimia e 8% eram anoréxicas. Os
dados serão apresentados amanhã no 8º Congresso Brasileiro
de Transtornos Alimentares e
Obesidade pela psicóloga Silvia
Brasiliano, coordenadora do
Promud. "As mulheres com
transtornos alimentares têm
oito vezes mais chance de ter
um transtorno relacionado ao
álcool e a outras drogas", diz.
A droga mais procurada por
quem sofre dos transtornos é o
álcool, mas são comuns os casos de uso de anfetaminas, cocaína e crack, que também ajudam a aplacar a fome.
As anoréxicas passam a recusar a comida, mas a aceitar o
uso dessas substâncias. As
compulsivas geralmente tentam substituir a comida por alguma delas, enquanto as bulímicas juntam, à compulsão,
formas de compensar a ingestão de calorias, como vomitar
ou usar laxantes e diuréticos.
Foi o que fez Sueli para chegar aos 45 kg. "Durante um
bom tempo, fiquei à base só de
remédio. Passei 21 dias sem comer, só chupava limão. Comecei a ter quedas de pressão. Aí
eu comia e vomitava tudo."
No ano que se seguiu, ela teve grandes alterações de peso e
entrou no que se chama de
"efeito sanfona". Teve que tomar injeção de corticoides para
asma e engordou um pouco.
"No fim do mesmo ano, estava
com 68 kg. Engordei e fiz dieta
de novo. Fui para 78 kg. No início do ano seguinte, eu já estava
com 53 kg", lembra.
Para a psicanalista Dirce de
Sá Freire, coordenadora do
curso de especialização
"Transtornos alimentares-
obesidade, anorexia e bulimia",
da PUC-RJ, a chave dos transtornos alimentares e da dependência de drogas é a mesma: a
compulsão.
As duas psicólogas concordam que a sociedade moderna tem sua parcela de culpa nos
transtornos. "Nossa sociedade
é centrada no indivíduo e há
enfraquecimento de vínculo
social", afirma Brasiliano.
"Isso abre portas para o que
chamamos de patologias do desamparo, como a compra e o jogo compulsivos", completa a
coordenadora do Promud.
Dirce de Sá, da PUC-RJ, acredita que esse tipo de comportamento esteja ligado à dificuldade de estabelecer e obedecer a
limites. "As marcas do nosso
tempo são a falta de limites e o
excesso. Estamos sempre à beira da transgressão", diz.
A isso soma-se a busca da
imagem ideal, inalcançável para a maioria das pessoas.
"A mídia vê a magreza como
padrão ouro de beleza. Há um
estímulo a viver perigosamente", afirma o psiquiatra Hamer
Nastasy Palhares, do Núcleo
Einstein de Álcool e Drogas, do
hospital Albert Einstein.
"Drunkorexia"
Musas da música pop como
Amy Winehouse e Britney
Spears, que frequentemente
combinam o uso de álcool e
drogas com pouca ou nenhuma
comida, costumam influenciar
as jovens.
Elas foram a inspiração para
o transtorno que vai virar assunto da próxima novela das oito, a "drunkorexia" (em inglês)
ou "ebriorexia" (em espanhol).
Os nomes não são científicos,
mas, segundo Palhares, podem
ajudar a esclarecer o problema.
"Não é um termo oficial, mas
tem um apelo didático. Ajuda
as pessoas a identificar que têm
um problema", diz.
Embora seja novidade para
alguns, os termos já são comuns em blogs de adolescentes. Depois das páginas que encorajavam a anorexia e a bulimia, o assunto da vez é a
"drunkorexia".
Ágata (também nome fictício), 19, é um exemplo. Ela e
uma amiga criaram uma comunidade no site de relacionamento Orkut para contar
suas experiências.
Para não ingerir muitas calorias, Ágata costuma pular refeições e fazer jejum nos dias
de festa ou de happy hour.
"Evito comer, até para não pesar o estômago, para poder beber à vontade e sentir que minha roupa continua agradável", conta a estudante.
Casos como o de Ágata podem não parecer alarmantes,
mas é tênue a linha que os separa da doença. "O divisor de
águas é quando a pessoa passa a
consumir o álcool a ponto de se
envolver em problemas como
atrasar no trabalho, provocar
uma pequena batida de carro
ou restringir a alimentação
exageradamente", explica Brasiliano, do Promud.
Antes de frequentar bares ou
festas, Ágata teve um "princípio de anorexia". Na época, ela
tinha um fotolog onde exibia
suas fotos e comunicava os
avanços de sua dieta. Com o
tempo, porém, a jovem desistiu
da ideia e voltou a ganhar peso.
"Recuperei todos os sofridos
quilos que emagreci", conta.
"De 20% a 30% dos casos de
aneroxia envolvem o uso de
substâncias psicoativas. É comum haver dieta bastante restritiva e uso de álcool", afirma o
psiquiatra Palhares.
Ele lembra que a prática, no
entanto, é um péssimo negócio.
"Um grama de álcool tem sete
calorias, o que é quase o dobro
do valor calórico de um um grama de açúcar."
Embora os transtornos alimentares atinjam principalmente as mulheres, eles não
são mais problemas exclusivos
delas. "Entre 10% e 15% dos
anoréxicos são homens. Não é
mais uma doença de gênero como se acreditava", diz a psicóloga Dirce de Sá.
Consequências
Ao se deparar com uma página similar à de Ágata na internet, Sueli não se conteve e enviou uma resposta à garota.
"Resumi meu histórico para ela
e espero que sirva para alguma
coisa", diz.
Depois de conviver 25 anos
com os transtornos alimentares e a dependência química,
entrar em coma alcoólico e tentar o suicídio, ela vê no corpo os
efeitos dessa combinação. Sofre de refluxo, hipertensão e
problemas intestinais.
Atualmente, Sueli tenta
manter sua compulsão sob
controle, mas sem ilusões.
"Não é fácil, é um problema para a vida inteira", reflete.
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