São Paulo, quinta-feira, 11 de julho de 2002
Texto Anterior | Índice

outras idéias - anna veronica mautner

Prever é poder?

É difícil viver ignorando o que nos reserva o dia de amanhã, se é que isso é possível. Fazemo-nos acompanhar, pela vida afora, por poderes de videntes, feiticeiros ou oráculos, capazes de perceber no presente sinais de um futuro que virá, sobre o qual nós não temos clareza. Para acalmar as inquietações da nossa "alma", não economizamos também em superstições que herdamos e criamos, modelos eficientes para abrandar as ansiedades trazidas pela estranheza. Não dá para arrolar aqui todos os recursos que conhecemos para abrandar o nosso sofrer. Convém lembrar os mapas astrais, o "I Ching", o tarô, a quiromancia, os búzios e até mesmo a ciência, que conseguimos, muitas vezes, usar como profecia. Fazemos negociações ao abdicar de fazer o que temos vontade para respeitar rotinas criadas por nós mesmos que tornam o "depois" previsível.
Nós, adultos, que dominamos tantos recursos, mal conseguimos conviver com o imprevisível, o que dirá uma criança, para quem tudo é estranho, que mal conhece o mundo?
Quando falamos do quanto de atenção e presença uma criança precisa para bem crescer, creio que tergiversamos. Não se trata de quanto, e sim de que precisa poder prever.
Dizemos que criança precisa de rotina. O que é a rotina senão previsibilidade? Parece-me que é mais importante informar o que vai acontecer daqui a pouco ou amanhã do que apenas ficar à disposição.
Se você não sabe quando vai voltar para casa, diga: não sei. Telefone quando souber. Ela precisa saber para poder prever. É essa previsibilidade que podemos fornecer que torna a separação e a ausência suportáveis. Não saber quando um desconforto vai acabar é uma tortura. Não é nada mau dizer e repetir que ainda não é hoje o dia do aniversário, que demora ainda para o papai voltar e para o Natal chegar.
É tão fácil dizer que "ainda não é hoje" (a data esperada) e tantas vezes não o fazemos. Pondo a mão na consciência, entendemos a necessidade de tornar o cotidiano da criança o mais previsível possível. Nós dispomos de um longo rol de recursos para imaginar o futuro. Para a criança, que mal conhece o mundo, nós somos os profetas, o recurso da profecia de que dispõem.
Como vimos, nossa necessidade de conhecer o futuro é tão grande que conseguimos distorcer até a ciência, atribuindo-lhe foros de profecia. É o que nos acontece, por exemplo, diante da medicina e do médico. Um bom resultado em exame de laboratório nos garante fé na saúde sem ameaça por um algum tempo. O buraco na camada de ozônio, para nós, leigos, transforma-se em profecia de cataclismo.
A rotina e a sua irmã previsibilidade são ingredientes necessários ao equilíbrio emocional dos humanos, como dizem os astrólogos.
Precisamos de profetas. Embebedamo-nos com profecias, mas cabe a nós, iludidos adultos, criar um meio com rotina e previsibilidade para as crianças enquanto não sabem se esquivar da angústia do estranho.
Prever é necessário. Ter profetas é preciso. Todos que de nós dependem precisam de nossas profecias -isso vale para crianças, subordinados, funcionários, ajudantes, colegas de equipe -, como nós também precisamos de profetas.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br



Texto Anterior: boquiaberto: Para não comprar vaca por búfala
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.