São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 2006
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S.O.S. família

Organizando a curiosidade

ANNA VERONICA MAUTNER

Despertar a curiosidade: eis a questão! A idéia de que despertando a curiosidade de alguém já o deixaríamos pronto para aprender vem se firmando há algumas gerações. Até que seria bom se fosse assim, mas a mente é infinitamente mais complicada, e a humanidade, mais complicada ainda. Quando ficou clara a função da curiosidade como parte importante no processo de aprender, desabrocharam teorias de como fazer isso. Se antigamente não se ligava muito para a curiosidade, que era vista como natural, hoje ela é uma questão crucial a ser implementada e entendida como um processo mental que ganha foros de "ideologia". Hoje tudo merece ser explicado, como se a curiosidade fosse filha direta de um certo tipo de razão.
Qualquer idéia ou informação exige que seus porquês e comos sejam explicitados. A liberdade para a curiosidade está tão arraigada que, quando os mais velhos falham em fornecer todos os esclarecimentos, sentem-se culpados. Vemos como é normal o adulto ficar surpreso diante de um questionamento. Se a criança faz uma pergunta, é porque o adulto atrasou-se em informar.
Ser curioso não é defeito. Não saber é uma condição necessária para aprender. Quando a resposta vem antes do questionamento, poda-se todo um processo mental de "bolação", fantasia e imaginação, o que empobrece o desenvolvimento. Quando eu sei, não preciso imaginar. Cabe ao adulto assistir ao desabrochar da fantasia, intervindo só quando o aprendiz corre perigo ou vai deixar de perguntar.
Já vi pais ensinando o bebê a esticar o braço para alcançar alguma coisa que ele apenas parece estar querendo pegar. Se o adulto lhe dá o objeto, está tirando a chance de a criança descobrir. Se ele ensina como pegar, desensina e poda o processo de tentativa e erro.


Por tentativa e erro, podemos até não descobrir o que queríamos saber, mas aprendemos muito sobre como aprender e sobre nós mesmos

Pelo caminho da tentativa e do erro, a gente pode até não descobrir as coisas que queríamos saber, mas aprendemos muito sobre como aprender e sobre nós mesmos. A ansiedade do adulto em querer ser um eficiente educador é tanta que elimina a ocasião da descoberta. Não há como não reclamar do apego excessivo à televisão, à internet e a outros informadores formais. Eles também nos antecipam indiscriminadamente as informações.
O Google e seus congêneres são substitutos rápidos e rasteiros, onipresentes e oniscientes -muito mais eficientes e completos do que todos os pais e mestres se esforçando para atender ao menor sinal de curiosidade.
Antes de dormir, muitas crianças continuam tendo direito a ouvir historinhas contadas e recontadas por algum adulto. Ai do contador de história que mude uma só vírgula da história anteriormente contada! Diante da máquina, a criança, que nem precisa pedir atenção, sabe que essa não erra. O DVD conta a mesma história todo dia do mesmo jeito.
Não imagino qual será o resultado dessa falta de diálogo. Certamente, faltarão aquelas pegadinhas que a atenta criança não deixa passar na verificação da exatidão da repetição. Ouvir história continua sendo uma ação interativa em que criança e adulto se testam. "Eu criança ouço, mas não o faço passivamente.
Sou passiva só diante da máquina." Eis um passo importante na organização da curiosidade. Não basta querer saber e obter a resposta.
Preciso desenvolver o meu jeito de vir a fazer alguma coisa com as informações obtidas. Posso recorrer à minha memória ou perguntar a alguém que eu penso saber mais do que eu. No exemplo do "contar história", a própria história é o que menos interessa. A criança já a conhece e, assim mesmo, quer ouvi-la mais vezes do mesmo jeito. Aprender é descobrir, para depois saber e só depois avaliar ou memorizar. As etapas são: dúvida, fantasia, pergunta, verificação de veracidade, armazenamento da informação (memória) e, em algum momento, aptidão para usá-la.
Quando a etapa da curiosidade/fantasia é eliminada, é colocada a primeira semente de um futuro dogma, preconceito ou rigidez. Esse é um dos perigos do autoritarismo.

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br

A colunista Rosely Sayão volta a escrever neste espaço na edição do dia 19 de janeiro


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