São Paulo, terça-feira, 12 de julho de 2011
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ANNA VERONICA MAUTNER

Questão de adaptação


Amenizar não é negar a dor da passagem. Não nos levam pela mão ao primeiro beijo ou primeiro emprego

A nossa vida, do nascimento até pelo menos o fim da adolescência, é constituída por uma sequência de mudanças que vai deixando um rastro de lembranças quase sempre sentidas como desconforto.
Sabemos que poucas crianças aceitam o sabor salgado com facilidade. A passagem do líquido para o sólido é amenizada pelos mingaus; a introdução do alimento pastoso intermedeia e facilita essa transição.
O incômodo de algumas passagens pode deixar marcas menos acentuadas, principalmente quando geram ampliação de horizonte.
Por exemplo, ninguém aprende a andar sem perder o equilíbrio e cair várias vezes. Em compensação, enxergamos mais longe na posição vertical para a qual estamos nos preparando.
Aprender a ler também pode ser desagradável, mas tem a promessa de fazer a criança entender os garranchos que estão nos livros.
O mesmo acontece quando aprendemos a escrever e quando adquirimos o domínio de novas línguas.
Essas transições, apesar de penosas, são suportadas com mais facilidade e podem nos trazer até boas recordações quando nos permitem crescer, ver mais e saber mais.
Separar-se de lugares ou pessoas também vem sempre acompanhado de dor. Faz parte de ser criança não poder nem querer ficar sozinha.
Cada separação traz embutidas situações de estranheza, e o fato de fazer a criatura ter que se haver com pessoas novas que substituem aquelas que se foram.
Existe uma expressão em português, que não se usa muito, mas nem por isso é menos importante: "ela está estranhando".
Criança estranha rostos novos, tetos novos, casas novas... Estranhar é sempre uma mistura de aprendizagem e desconforto.
Até aqui, fiz uma introdução para falar do primeiro dia na escola, que traz em seu bojo um belo punhado de pessoas, lugares, sons. Tudo novo -causando estranheza.
Diferentemente de quando está em casa, ao entrar na escola a criança não é mais um membro conhecido de uma família e passa a ser apenas uma entre muitas, a serem dirigidas e cuidadas por pessoas ainda estranhas.
São muitas mudanças, mas elas têm que ocorrer. Tenta-se amenizar, admitindo um tempo de adaptação, no qual alguém de casa fica na escola, disponível. Esse alguém pode ser a mãe, a babá, o pai, que ficam à vista, porém, à distância.
Nas etapas posteriores da vida, períodos de ajuda na adaptação serão cada vez mais raros. Aquela mão que nos ajuda a dar o primeiro passo ou a presença do familiar à vista na escola estará cada vez mais ausente nos outros momentos. Ninguém nos leva pela mão para o primeiro beijo, primeiro emprego, lua de mel etc.
Há poucas décadas, todo mundo tinha certeza de que era melhor deixar cada um enfrentar as dores do crescimento e da socialização sozinho, do seu jeito. Estamos cada vez mais convencidos de que devemos amenizar a dor dessas passagens. Amenizar, contudo, não quer dizer eliminar a dor. Quer dizer "quero que você sofra o mínimo possível". Não tem jeito, nem seria desejável, transformar a infância num mar de rosas que ninguém encontrará depois, na vida a ser vivida.
A vida pode ser vista como um mar de rosas, só que rosa também tem espinhos, não só pétalas. Que pena!

ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.Ágora) e "Educação ou O Quê?" (Summus).

ROSELY SAYÃO
A colunista está em férias.


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