São Paulo, quinta-feira, 12 de agosto de 2004
Texto Anterior | Índice

outras idéias

Debate político é democracia?

dulce critelli

Você também concorda que "garantir a todos oportunidades iguais" é uma atitude democrática? Cuidado! Especialmente se, para realizar tal fim, quaisquer meios forem usados, inclusive os que nos levam ao seu oposto, às ditaduras e aos totalitarismos.
Foi o que pensei ao assistir ao debate entre os candidatos a prefeito de São Paulo, realizado pela TV Bandeirantes neste começo de agosto. O programa foi uma amostra da confusão comum entre o exercício da democracia e sua imposição. A soberania das regras e o controle disciplinador da conduta dos participantes, exercidos pelo mediador, são providências autoritárias.


É por meio do debate, da discussão, da veemência, do uso de recursos, mesmo que escusos, que os debatedores revelam quem são àqueles que os observam e assistem a eles. E é assim que os espectadores vão formando sua opinião e definindo suas escolhas


No exercício democrático, cujo princípio fundamental é a igualdade, não pode haver donos do poder. Na democracia grega antiga, modelo no qual nos inspiramos, era exatamente do mando que os cidadãos abdicavam. A igualdade, para eles, significava não comandar ninguém nem ser comandado. E não se estabelecia, por isso mesmo, nenhuma desordem, pois o comando era superado pela arte e pela capacidade de fazer acordos. Em outras palavras, pela ação política.
No debate em questão, a igualdade, de imediato, foi ferida pela desigualdade de poder que se instaurou entre o mediador e os candidatos, cuja função maior pareceu ser a de disciplinar e conter o comportamento dos participantes. Seu instrumento era a distribuição eqüitativa do tempo concedido às suas falas e um rigoroso controle contábil.
Na estrutura do programa, o que importava eram a norma, a ordem e a assepsia.
As regras não poderiam ser mais importantes do que o próprio debate, porque elas mesmas não são fins, mas apenas meios para seu acontecimento. Por exemplo, uma frase e uma idéia não poderiam ficar pela metade porque o tempo regulamentar do participante se esgotou. O espectador deveria ouvi-las até o fim. Afinal de contas, o programa deveria servir aos candidatos e aos espectadores ou eleitores.
A função do programa era favorecer o que está para ser negociado entre eles: o voto. E, por meio do voto, o destino de uma cidade e da nossa própria cidadania.
O que se esperava com tanto controle? Os ânimos e o caráter pessoal não podem ser alvos de vigilância e disciplina.
É por meio do debate, da discussão, da veemência, do uso de recursos, mesmo que escusos, que os debatedores revelam quem são àqueles que os observam e assistem a eles. E é assim que os espectadores vão formando sua opinião e definindo suas escolhas.
Não é somente um projeto político que está em questão, mas a pessoa que vai efetivá-lo. A simples exposição de uma idéia não persuade ninguém. O que nos convence são mais do que palavras frias e gestos policiados. Somos capturados por algo que se vai revelando aos poucos, ao vermos as pessoas lidarem com as situações e se dirigirem umas às outras.
Diante de tamanho disciplinamento, não restava aos candidatos senão serem os atores de um roteiro previamente ensaiado. Hipocrisia e falsificação. Quase impossível perceber a pessoa escondida atrás do produto em que se transformaram, ajudados pelo marketing e pela publicidade.
Mas esse é o saldo de uma sociedade que prefere as coisas aos homens, pois elas podem ser manipuladas e descartadas conforme as conveniências.
Os homens são rebeldes por natureza, porque nenhum é idêntico ao outro. Suas diferenças pessoais são o que os obriga a negociar entre si para a realização de seus objetivos e interesses, de seus sonhos e de seus desejos. É o que os leva a agir politicamente, pois homem nenhum pode realizar seus fins solitariamente.
O disciplinamento quer passar por cima dessas diferenças, quer suprimi-las, suprimindo a ação política.
A supressão da política pela disciplina é, na verdade, a supressão da nossa própria condição de humanidade, da expressão da nossa singularidade e da nossa capacidade de fazer acordos para agir em conjunto. Podemos mudar esse rumo?

DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia.com.br


Texto Anterior: Poucas e boas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.