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Outras idéias - Dulce Critelli
Entre o mal e a graça
Viver é sempre dar respostas ao inesperado.
Podemos fazer planos para o futuro,
programar atividades ou nos
preparar emocional e psicologicamente para enfrentar certas situações, mas sabemos que
tudo pode dar errado ou, simplesmente, não acontecer.
Esquecemos que nossas vistas alcançam apenas a ponta do
iceberg. Esquecemos que os
acontecimentos da vida são imprevisíveis e nos sentimos sinceramente pegos de surpresa,
como se a imprevisibilidade da
vida fosse algo incomum e inusitado. Ela nos bate à porta todos os instantes.
O palco onde a vida ocorre é
um lugar iluminado, mas, se
prestarmos atenção, ele está incrustado no seio de uma zona
escura. É o mistério. A vida habita no coração do mistério,
instalando nele uma clareira.
Não distinguimos o que se esconde no seio do mistério, mas
sabemos que ele não é despovoado nem morto. Da sua escuridão, são liberados para a luz
da vida os acontecimentos que
chamamos de inesperados.
Quando o inesperado nos rouba aqueles que amamos ou as
coisas que nos fazem bem, o reconhecemos como uma tragédia. Quando nos traz benefícios
ou realiza nossos mais caros
desejos, dizemos que se trata de
uma benção. Dependendo de
como nos atinge, o inesperado
ou é o mal, ou é a graça.
Ao aparecer em cena, o inesperado nos faz uma provocação. Como mal ou como graça,
ele nos desconcerta e desarruma a ordem dos nossos dias, da
nossa casa e dos nossos sonhos.
Não há hábito ou determinação
que o desarme. Nem crença que
diante dele se sustente. Como
mal ou como graça, o inesperado é uma tempestade que
ameaça devastar nossa continuidade e nossa coerência.
Obriga à mudança e impõe a
transformação.
Difícil é a entrega ao imprevisível. Antes, o mais imediato é
uma espécie de temor. Medo e
fascínio. Sobretudo ansiedade.
O comum é nos defendermos
do inesperado, buscando garantias para nossos passos e para o seu resultado.
Opomos a
eles nossa rigidez e nossa intransigência. Tudo o que nos
faz adoecer e perder a alegria.
A vida não é nem sólida como
uma rocha nem firme como a
terra. Ela é fluida como os rios e
como o mar. E o mistério que a
ronda a perpassa por inteiro,
rarefeito e invisível como o ar.
E, assim como não podemos
comandar o ar (a não ser aspirando-o pouco ou em demasia e
comedindo a expiração), também não controlamos o mistério e não podemos impedir que
ele nos atravesse e aja da sua
maneira.
Diante do mistério que o
inesperado nos entrega, o que
nos cabe é, apenas, respirar.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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