São Paulo, quinta-feira, 12 de outubro de 2006
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Outras idéias - Dulce Critelli

Entre o mal e a graça

Viver é sempre dar respostas ao inesperado. Podemos fazer planos para o futuro, programar atividades ou nos preparar emocional e psicologicamente para enfrentar certas situações, mas sabemos que tudo pode dar errado ou, simplesmente, não acontecer.
Esquecemos que nossas vistas alcançam apenas a ponta do iceberg. Esquecemos que os acontecimentos da vida são imprevisíveis e nos sentimos sinceramente pegos de surpresa, como se a imprevisibilidade da vida fosse algo incomum e inusitado. Ela nos bate à porta todos os instantes. O palco onde a vida ocorre é um lugar iluminado, mas, se prestarmos atenção, ele está incrustado no seio de uma zona escura. É o mistério. A vida habita no coração do mistério, instalando nele uma clareira.
Não distinguimos o que se esconde no seio do mistério, mas sabemos que ele não é despovoado nem morto. Da sua escuridão, são liberados para a luz da vida os acontecimentos que chamamos de inesperados.
Quando o inesperado nos rouba aqueles que amamos ou as coisas que nos fazem bem, o reconhecemos como uma tragédia. Quando nos traz benefícios ou realiza nossos mais caros desejos, dizemos que se trata de uma benção. Dependendo de como nos atinge, o inesperado ou é o mal, ou é a graça.
Ao aparecer em cena, o inesperado nos faz uma provocação. Como mal ou como graça, ele nos desconcerta e desarruma a ordem dos nossos dias, da nossa casa e dos nossos sonhos.
Não há hábito ou determinação que o desarme. Nem crença que diante dele se sustente. Como mal ou como graça, o inesperado é uma tempestade que ameaça devastar nossa continuidade e nossa coerência. Obriga à mudança e impõe a transformação.
Difícil é a entrega ao imprevisível. Antes, o mais imediato é uma espécie de temor. Medo e fascínio. Sobretudo ansiedade. O comum é nos defendermos do inesperado, buscando garantias para nossos passos e para o seu resultado.
Opomos a eles nossa rigidez e nossa intransigência. Tudo o que nos faz adoecer e perder a alegria. A vida não é nem sólida como uma rocha nem firme como a terra. Ela é fluida como os rios e como o mar. E o mistério que a ronda a perpassa por inteiro, rarefeito e invisível como o ar.
E, assim como não podemos comandar o ar (a não ser aspirando-o pouco ou em demasia e comedindo a expiração), também não controlamos o mistério e não podemos impedir que ele nos atravesse e aja da sua maneira.
Diante do mistério que o inesperado nos entrega, o que nos cabe é, apenas, respirar.


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br


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