São Paulo, terça-feira, 12 de outubro de 2010
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ROSELY SAYÃO

Como assim, ele não gosta de estudar?


Não bastasse o seu maldito trabalho, tinha que enfrentar a dura vida de mãe

UMA SEMANA sem dormir bem acaba com a vida de qualquer um. De qualquer uma, especialmente. Olheiras, expressão carregada, cara de doente. Quando ela se olhava no espelho, o que via era uma imagem que parecia de uma mulher muito mais velha do que realmente era e mais ainda do que se esforçava tanto para ostentar.
Culpa do trabalho. Não parava de pensar naquela encrenca em que tinha se transformado o que, no começo, parecia ser tão bom. Na verdade, até então, ir trabalhar era uma das coisas que considerava boa em sua vida.
A rotina que estabelecera -levantar-se sempre bem cedo para ter tempo de correr e só depois tomar um banho relaxante e se arrumar- era uma conquista recente.
Só depois que o filho completou os nove anos foi que conseguiu realizar o sonho de armar esse esquema que tanto curtia.
Nem mesmo o trânsito caótico que enfrentava diariamente conseguia roubar seu bom astral. Seu minúsculo aparelho de reproduzir músicas, devidamente carregado com aquelas de que mais gostava, era o responsável por isso. Valera a pena ter ficado tantas horas na internet procurando, selecionando, baixando os enormes arquivos, organizando.
Encontrar-se com os colegas de quem mais gostava, tomar um café juntos e colocar a conversa em dia antes de enfrentar o doidivanas de seu diretor era quase que um ritual necessário, que a preparava para começar a enfrentar seu agora permanente inferno astral.
Pressão, baixaria, cobrança na base do grito: era assim que seu diretor se relacionava com ela. E agora, então, que o comandante-mór dera para insinuar que seu colega, que nem usava desodorante, obtinha mais êxito nas tarefas do que ela? Sabia que estava sendo avaliada, testada, e por isso sentia que o estômago estava sempre embrulhado para presente e estacionado bem no meio da garganta.
Odiava o trabalho, essa era a verdade. Se não fossem as tarefas a realizar sempre com prazo marcado, o relacionamento ruim com o chefe e, em especial, com o colega que resolvera competir com ela, vá lá.
Todo dia, ao sair da empresa, pensava em não mais voltar, imaginava o local ideal para trabalhar. Mas logo caía na real: isso não existia e como viver sem trabalhar e sem seus benefícios?
Como se não bastasse essa vida tão atribulada, tantos problemas, tanto desassossego e insatisfação profissional, ainda tinha de enfrentar a dura vida de mãe.
Fora avisada pela escola do filho de que ele ficara para recuperação. E mais: perigava ficar retido ao final do ano. Não é que o filho não gostava de estudar? O menino, agora com 11 anos, gostava de futebol e do videogame, e a isso se dedicava horas a fio. Mas, estudar?
-Eu gosto da escola, mãe, mas de estudar não gosto, não. É muito chato.
-Mas você vai repetir o ano e ficar sem seus amigos, menino!
-Não tem importância, não, mãe, eu faço outros.
Como assim? Ele não gosta de estudar?! Filho ingrato, não sabe valorizar o que é bom e nem o esforço que ela faz para dar a ele a melhor escola.
O que será do futuro dele? Como irá enfrentar esse mundo tão competitivo?
Ela, de fato, por mais esforço que fizesse, não conseguia entender o que acontece com uma criança que diz que não gosta de estudar. Talvez fosse caso para psicólogo ou neurologista.
É. Deve ser essa a solução, pensou, enquanto voltava de mais um dia tenso e desgastante na empresa, e já preparada para contabilizar outra noite mal dormida por causa do maldito trabalho e da pasta que trouxera para continuar uma tarefa em casa.
Imagine, levar trabalho para casa, isso é coisa que se faça?


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)


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