São Paulo, quinta-feira, 13 de agosto de 2009 |
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OUTRAS IDEIAS Anna Veronica Mautner As mudanças na linguagem
Não é à toa que chamam o Brasil de país de bacharéis: tem o que manda, o que obedece, tem o réu e o que acusa. E encontramos isso tudo radiografado pela linguagem oral coloquial com a qual nos comunicamos. É só observar. As formas de comunicação e os rituais acompanham as transformações das organizações sociais. Onde a desobediência ao ritual é mais pesadamente punida encontramos mais jeitos de expressar as emoções pelas costas. Por medo de que fossem pegos em flagrante, o escravo, o servo e a criança foram criando gestos que podiam ser feitos quando as autoridades estivessem pelas costas. O gesto era preferível porque o som poderia chegar ao ouvido do desobedecido. Fazer careta, mostrar a língua, dar banana, fazer gestos obscenos -tudo isso se faz pelas costas e dá certo alívio ao que foi repreendido ou comandado. Quando obedecemos à revelia de nós mesmos, procuramos uma forma de liberação. Em substituição ao gesto "banana para você", que não se usa mais, apareceu o "Tó que eu vou fazer", "Tó aqui que eu vou te obedecer". Conforme a autoridade foi ficando menos poderosa, o sentido desses gestos foi permeando a linguagem. De reverência caímos fácil na irreverência. A mudança do poder dos poderosos corresponde à passagem do gesto para as expressões, que nem por isso deixam de carregar conteúdos não explícitos. "Não, é que..." seguido de uma explicação que, em resumo, quer dizer "Não fui eu", "Não me castigue". Antes que me acusem, já me desculpo e me esquivo. Quem prestar atenção deve lembrar de outras tantas expressões sintéticas: "Vá lá que seja!", "Coisa nenhuma", "Deixa para lá", "Enfim...". E tem também aquele recurso do autoritário que gostaria de ter autoridade e usa a expressão "Deixa ele...", "É bom ele...", como se alguém tivesse pedido permissão. Ou é o culpado que fala, acusado pelo juiz ("Não, é que...") ou é o juiz que enuncia sua aprovação, explicando o por quê. Mesmo quando informados sobre um evento, enunciamos uma aprovação ou desaprovação. Como se o comunicado pedisse não uma atitude empática, não uma comunhão de interesses, e sim uma permissão. Isso nos leva ao passo seguinte, que é o de querer nos desvencilhar da culpa supostamente atribuída. A culpa, a responsabilidade, o desencadeamento é sempre uma ação do outro. "Não, é que ele atrasou". "Não, é que eu nem estava lá". Mas o "não" não engana. A aceitação do gerundismo nos remete a uma fuga dessa responsabilidade. "Estaremos fazendo", "Estaremos comunicando" é um jeito de evitar a acusação futura. "Eu vou estar fazendo" significa "Não sei quando vou acabar, mas vou acabar". Portanto, não estou sujeito a cobranças. Quando o interesse das empresas adotou o gerúndio em telemarketing, a mosca caiu no mel. E a sociedade vai mudando e a linguagem corre atrás. E a língua brasileira vai ficando cada vez mais nossa. ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli Próximo Texto: Correio Índice |
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