São Paulo, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
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OUTRAS IDEIAS

Dulce Critelli

Ambiguidade


[...] AMBIGUIDADE É FALAR SOBRE O QUE DEVE SER FEITO, MAS NÃOFAZER E CONTINUAR FALANDO


Como a gente muda, meu Deus! Devagarzinho, sem perceber e, de repente, se enxerga outra pessoa. Tem outros interesses, outras aspirações...
Às vezes, até outro paladar e um gosto diferente pela vida. Olho para minha estante. Está cheia de livros de Heidegger, um filósofo que tanto me ajudou a pensar, me deu tanto material para o trabalho, me abriu tantos caminhos e, hoje, quero me libertar dele.
Descobri Agatha Christie. Da filosofia ao romance policial. É certo que ambos têm em comum um certo gosto investigativo, mas estão distantes nas finalidades. Uma quer a verdade, independentemente do caso. O outro quer a verdade do caso, o motivo. Uma quer as verdades universais; ao outro, só lhe interessam as particulares.
Retomei, também, Machado de Assis. Escritor que observa a vida, tece suas filosofias, mas está longe de ser filósofo convencional. Hannah Arendt diz que o humor do filósofo é a melancolia, coisa que Machado parece não saber o que é. Ele abusa da ironia. E, se faz alguma investigação, está atrás do riso e das idiossincrasias.
Sempre que estou em férias mergulho na literatura de ficção. E me convenço de que ali é meu lugar. Não apenas ler, mas o desejo de escrever, também.
Vou indo aos poucos... Todo ano me prometo (e reitero a promessa para este ano) que vou escrever um romance. Menos. Um conto está bom. Não.
Dois, três, um livro de contos. É isso, vou me dedicar à ficção...
Mas fico dando voltas. Adiando. Medo de escrever. O quê?
Sobre o quê?
A gente vai mudando, mas nem tanto. Parece que muda por dentro mas, mudar aí fora, no mundo, é que são elas! Existem os compromissos, a necessidade de sobrevivência, os acordos com os outros que precisarão ser modificados, renovados ou, quem sabe, rompidos. Vou sustentar isso?
E tem, ainda, o tempo e os interesses dos outros, que nem sempre combinam com os da gente. Se desse para seguir em frente sozinhos... Mas quem quer realizar o que promete a si mesmo se, com isso, por exemplo, magoar os outros? Difícil.
Tem a preguiça, também. Ah, começar tudo de novo, quando tudo, de alguma maneira, está correndo tão bem... E tem a insegurança. Será que vai dar certo? E se eu investir, mudar um monte de coisas, empregar tempo, dinheiro e esforço e não der em nada? Se for bom só no sonho? Melhor só sonhar.
Heidegger (aquele filósofo de quem disse que quero me libertar, mas parece que não consigo) diz que, no dia a dia, usamos um modo de linguagem que nos ajuda a não sair do lugar: a ambiguidade. Ambiguidade é falar sobre o que deve ser feito, mas não fazer e continuar falando.
Por exemplo: "Segunda-feira começo uma dieta", "Vou parar de fumar"...
Machado de Assis diz algo semelhante no conto "Teoria do Medalhão", em que um pai ensina o filho como proceder para ser grande e ilustre. Entre seus conselhos, está o de jamais dar alguma ideia inusitada ou que indique uma atitude a ser tomada. E, continua ele, quando houver a requisição de certo comportamento, nada melhor do que sair pela tangente. Melhor falar de tudo por alto, como "Antes das leis, reformemos os costumes".
É a mesma fórmula do "Quando... então", em que se espera condições, ideias para agir -"Quando eu tiver mais dinheiro...", "Quando as crianças crescerem..."
Ambiguidade. Querer, sem ir atrás. Falar só para falar. Um pouco do que estou fazendo aqui... E comigo mesma.


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner


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