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Outras idéias - Dulce Critelli
Usar e ser
Há cerca de dez dias,
três jovens seqüestraram um homem.
Não ligaram para a
família dele pedindo resgate,
mas o levaram para um shopping e o fizeram comprar bonés, camisetas, calças jeans,
óculos, relógios, tênis, um celular, um notebook e uma TV de
plasma. Coisas para usar.
Fiquei pensando sobre o que,
lá no fundo, eles queriam. Apenas ter acesso a objetos dos
quais sua situação financeira
certamente não lhes permitiria
chegar perto? À primeira vista,
esse parece ser um motivo óbvio, mas acho que esses jovens
queriam mais, eles queriam ser.
E, para ser, eles precisavam se
envolver nos objetos e roupas
que os fizessem ter o sentimento de existir -signos contemporâneos do ser.
Nesse episódio se exibe a
condição mais elementar da
existência: tudo o que existe,
para se tornar efetivamente
real, tem que "aparecer". Não
basta às coisas e às pessoas estarem por aí. Para ser, elas precisam aparecer. O que não aparece se "desrealiza". Em seu livro "A Vida do Espírito", Hannah Arendt lembra que "[...] para nós, que aparecemos neste
mundo, vindo de lugar nenhum
e indo para lugar nenhum, ser e
aparecer coincidem".
Arendt diz, também, que
compartilhamos com todos os
seres vivos um certo impulso
de exibição (por exemplo, o desabrochar de uma flor), mas
que apenas nós, humanos, experimentamos o impulso de
apresentação. Quer dizer, podemos decidir sobre como queremos aparecer para os outros.
Quer dizer, também, que podemos decidir sobre como os outros devem se apresentar a nós
para que os vejamos.
Nossa sociedade vem exigindo que trajemos um certo vestuário, tal qual a plumagem dos
pássaros, como condição para
nos fazer aparecer, para nos
apresentarmos e, então, sermos vistos e ouvidos. A realidade bruta, por si mesma, não
existe. Se não usarmos essa vestimenta, ficamos na sombra. E,
se não formos percebidos, simplesmente não somos.
O que me intriga é que esses
jovens apreenderam que só no
mais puro aspecto está o critério para se apresentarem no
mundo. Perceberam a superioridade da pura aparência. E
acho que eles têm razão, embora não estejam certos. Acaso
nossa sociedade não valoriza,
ao extremo, as feições, os puros
signos da beleza, da riqueza, do
status e do poder?
Não são mais exemplos indivíduos que fizeram algo pelo
mundo. Para a maioria, Buda,
Cristo, Gandhi, se conhecidos,
não passam de heróis de ficção,
em tempos que, talvez, aconteceram. A ordem, agora, é outra:
usar e ser.
[...] Nossa sociedade não valoriza, ao extremo, as feições, os puros signos da
beleza, da riqueza, do status e do poder?
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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