São Paulo, quinta-feira, 14 de junho de 2007
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Outras idéias - Dulce Critelli

Usar e ser

Há cerca de dez dias, três jovens seqüestraram um homem. Não ligaram para a família dele pedindo resgate, mas o levaram para um shopping e o fizeram comprar bonés, camisetas, calças jeans, óculos, relógios, tênis, um celular, um notebook e uma TV de plasma. Coisas para usar.
Fiquei pensando sobre o que, lá no fundo, eles queriam. Apenas ter acesso a objetos dos quais sua situação financeira certamente não lhes permitiria chegar perto? À primeira vista, esse parece ser um motivo óbvio, mas acho que esses jovens queriam mais, eles queriam ser.
E, para ser, eles precisavam se envolver nos objetos e roupas que os fizessem ter o sentimento de existir -signos contemporâneos do ser.
Nesse episódio se exibe a condição mais elementar da existência: tudo o que existe, para se tornar efetivamente real, tem que "aparecer". Não basta às coisas e às pessoas estarem por aí. Para ser, elas precisam aparecer. O que não aparece se "desrealiza". Em seu livro "A Vida do Espírito", Hannah Arendt lembra que "[...] para nós, que aparecemos neste mundo, vindo de lugar nenhum e indo para lugar nenhum, ser e aparecer coincidem".
Arendt diz, também, que compartilhamos com todos os seres vivos um certo impulso de exibição (por exemplo, o desabrochar de uma flor), mas que apenas nós, humanos, experimentamos o impulso de apresentação. Quer dizer, podemos decidir sobre como queremos aparecer para os outros.
Quer dizer, também, que podemos decidir sobre como os outros devem se apresentar a nós para que os vejamos.
Nossa sociedade vem exigindo que trajemos um certo vestuário, tal qual a plumagem dos pássaros, como condição para nos fazer aparecer, para nos apresentarmos e, então, sermos vistos e ouvidos. A realidade bruta, por si mesma, não existe. Se não usarmos essa vestimenta, ficamos na sombra. E, se não formos percebidos, simplesmente não somos.
O que me intriga é que esses jovens apreenderam que só no mais puro aspecto está o critério para se apresentarem no mundo. Perceberam a superioridade da pura aparência. E acho que eles têm razão, embora não estejam certos. Acaso nossa sociedade não valoriza, ao extremo, as feições, os puros signos da beleza, da riqueza, do status e do poder?
Não são mais exemplos indivíduos que fizeram algo pelo mundo. Para a maioria, Buda, Cristo, Gandhi, se conhecidos, não passam de heróis de ficção, em tempos que, talvez, aconteceram. A ordem, agora, é outra: usar e ser.

[...] Nossa sociedade não valoriza, ao extremo, as feições, os puros signos da beleza, da riqueza, do status e do poder?


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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