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Outras idéias - Anna Veronica Mautner
Agruras de casar
Se é mesmo verdade que
hoje se casa cada vez
mais tarde, há também
quem diga que se casa
cada vez mais cedo. É possível
que as duas afirmações sejam
verdadeiras.
Permito-me uma digressão
sobre as dificuldades atuais em
realizar o sonho, que quase todo mundo tem, do tal casamento para toda a vida. Eu me pergunto: como é possível casar
cedo se saímos cada vez mais
tarde da adolescência?
Casar tarde não é problema;
ser adolescente solteiro é. A vida noturna, que é quando ocorre o encontro com parceiros,
vai ficando violenta e se soma à
liberdade sexual, que traz novos riscos.
Lembremos uma velha frase
que diz: quem casa quer casa.
Se os jovens têm cada vez menos dinheiro para montar uma
casa, justamente por serem
muito jovens, o que fazer? Há
não muitos anos, quando os jovens queriam casar e não tinham como, eles moravam
com a família até conseguir
montar o próprio lar.
Hoje, morar com a família é o
que um casal menos quer -e
tampouco o querem os pais. Os
estilos de vida diferem hoje
muito mais do que antes.
Alavancar o orçamento dos
casais é um hábito que sempre
existiu, só que não era confortável. Hoje a alavanca se tornou
muito agradável: estando cada
um na sua casa, não se atrapalham. Assim, o tempo da dependência se alonga. Na ausência de proteção da geração anterior, resta o casamento tardio
-depois que um pé-de-meia foi
feito ou que o par atinge estabilidade profissional.
Isso não ocorre com os adolescentes nem com os adultos
jovens. Um casal de classe média que deseja se instalar, por
mais modestamente que seja,
precisa dispor de uma pequena
fortuna. Fogão, geladeira e televisão não fazem mais um lar.
Precisa-se de som, máquina de
lavar louça, computador, impressora, telefone, TV a cabo,
DVD e um carrinho que seja,
além do enxoval e dos móveis.
Poderão alguns argumentar
que muito disso se ganha de
presente de casamento. Acontece que cada maquineta exige
manutenção e eventual substituição. Além disso, há seguros a
pagar, inclusive o de saúde.
Com ajuda das famílias, pode-se casar cedo ou tarde. Sem
ela, o começo é bem difícil, mas
tem sua vantagem: lutar juntos
sedimenta a relação.
Depois desse mergulho na
realidade, sou levada a me indagar sobre as conseqüências dessa dependência sem data para
terminar. Creio que afeta a ligação do casal, pois faltam espaço
e liberdade para sonhar juntos.
Um bom casamento tem a
ver com fazer projetos comuns.
Se eles não têm como sonhar
com os fins de semana que poderão ter, com as viagens que
farão, com a escola e o futuro
resta para sonhar juntos?
Sem plano e sem sonho, um
casal continua solteiro, namorando. São muitos os casais
que vivem de forma nuclear,
mas sob tutela. Como vimos,
isso também acontecia antigamente -só que, morando num
quarto na casa da família, sonhavam em ter um teto próprio. Aí a pressão era forte para
sair de lá. Os casais que vivem
na interface entre autonomia e
dependência perdem a liberdade de criar um jeito próprio
de existir, de fazer escolhas de
prioridades, como "viajar antes de ter filhos ou ter filhos
antes de viajar". Sempre existe
alguém com autoridade de
provedor para palpitar.
A família nuclear vive uma
crise, mas continua sendo o
microcosmo mais forte da sociedade. Enquanto outras instituições tremem, os casamentos -mesmo os prematuros-
vão adiante, firmes e fortes, como base de formação psicológica da sociedade por vir que
será a de seus filhos.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
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