São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

WILSON JACOB FILHO


Necessidade de desafios


[...] AQUELE HOMEM, EMBORA LIMITADO, TINHA A NECESSIDADE DE FAZER ALGO QUE LHE JUSTIFICASSE A EXISTÊNCIA

Fui com minha irmã a um asilo de idosos, desses que vivem da abnegação de uma ordem religiosa e das doações de pessoas generosas, seja na forma de bens, seja na de trabalho.
Em um local assim, experimentam-se diversas emoções. Mais intensas, a meu ver, do que quando visitamos um orfanato porque todos sabemos que crianças fomos, mas não que idosos seremos.
Passados, porém, os primeiros instantes de impacto, é possível atentar para as peculiaridades dos espaços, objetos, cuidadores e moradores: sons, odores e imagens se misturam como num grande caleidoscópio ambiental. Há sempre motivos para externar o pranto, a exclamação ou o riso.
Por atuar amiúde nessas instituições, dei-me por satisfeito de conhecer os aposentos e voltei ao pátio de entrada, onde a maioria dos idosos capazes de ficar em cadeira de rodas se agrupava, em um silencioso convívio com os visitantes.
Em meio a esse cenário de múltiplas percepções, atentei para um dos moradores, com o lado esquerdo do corpo semiparalisado, varrendo folhas e gravetos da calçada.
Chamavam a atenção os detalhes daquela atividade, cuidadosamente realizada, apesar da grande limitação. Perguntei-me o que motivaria alguém, naquelas condições, a se dedicar a um trabalho que para muitos não teria importância.
Enquanto meditava sobre essa forma peculiar de agir, lembrei-me de um relato que li, quando criança, sobre a intenção de manter em cativeiro um pequeno mamífero que vivia naturalmente à beira-rio. Todas as tentativas de alimentá-lo resultaram infrutíferas. Os mais variados animais, vivos ou mortos, foram-lhe oferecidos e nem sequer foram tocados. Todos os espécimes que participaram dessa tentativa de ambientação morreram à míngua.
Numa das vezes, porém, o tratador lançou um pedaço de peixe no cercado e acertou o bebedouro. Ao ouvir o som do impacto na água, o animal pôs-se alerta, subiu em uma árvore e deu um salto preciso sobre a vasilha, "caçando" a presa que acabara de ser lançada.
Pela primeira vez, o tratador viu aquele animal se alimentar e entendeu que ele precisava se sentir capaz de participar da sua conquista, mesmo preso.
Estava eu, portanto, diante de alguém com sentimento semelhante. Aquele homem, embora limitado, não se permitia passar sentado ou deitado o dia todo, apenas à espera de cuidados e alimentos. Tinha a necessidade de fazer algo que lhe justificasse a existência. Por não abdicar dos seus desafios, tornou sua vida ilimitada, a despeito da sua duração.
Prestei bem atenção na sua fisionomia enquanto retornava ao portão de entrada. Serena, expressava o incomparável prazer do fazer bem feito. Não emitiu nem ouviu qualquer comentário. Bastava-lhe a agradável sensação de estar vivo e ativo para poder testar constantemente os seus limites.
Quisera que todos pudessem sentir-se assim nas diferentes fases das suas vidas.


WILSON JACOB FILHO , professor da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas (SP), é autor de "Atividade Física e Envelhecimento Saudável" (ed. Atheneu)

wiljac@usp.br



Leia na próxima semana a coluna de Michael Kepp


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