São Paulo, quinta-feira, 17 de julho de 2008
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MICHAEL KEPP

Uma química nada cósmica

Dois amigos, padrastos por quase uma década, têm a mesma reclamação: a relação com seus enteados não satisfaz. "Não há química", diz um. Quando viraram padrastos, as mulheres rezaram por uma convivência pacífica com os filhos. Mas meus amigos queriam laços mais paternais.
Um reclama que o enteado só fala de esportes, o assunto de que menos gosta. O outro resmunga que os enteados se recusam a discutir filmes que vêem juntos. Ambos sabem que muitos adolescentes vêem os padrastos não como pessoas interessantes, mas como figuras de autoridade com quem têm só uma coisa em comum: a mãe.
Mas meu conselho só os afunda mais na fossa. "Seja paciente", digo, "essa química não é nada cósmica e raramente é imediata. Pode levar muito mais tempo, ou nunca aparecer".
Quando comecei a conviver com meus enteados adolescentes, nossa química foi uma lenta reação em cadeia. Começou com diálogos que soavam como debates. Um que ninguém venceu ocorreu quando, após dois anos lavando louça, pedi que passassem a ajudar. Meu argumento: eu cansara de ser empregado deles. Sua réplica: um padrasto não tem o direito de mudar a divisão de trabalho em um lar brasileiro, no qual pais ou empregados fazem tudo.
Então, a mãe deles, que rezava por uma convivência pacífica, começou a lavar a louça.
Depois que esses reizinhos entraram na faculdade, nossos diálogos ficaram menos contenciosos. Meu enteado, um pianista, trocava idéias comigo, mas quase sempre sobre música. Eu e minha enteada, que fez psicologia, batemos papos sobre tópicos variados, mas nunca por tanto tempo quanto eu gostaria. Se começo uma história rica em detalhes, diz: "Conte a versão resumida". Mas aceitei esses limites e torci para que fossem ainda mais relaxados.
Com meu enteado, a virada ocorreu quando uma espinha de salmão ficou presa em sua garganta. Eu o levei ao pronto-socorro, e o médico não achou nada. Disse: "O que seu filho sente saiu. A sensação é imaginária". Mas a expressão de desconforto dele era real. Recusei-me a aceitar o diagnóstico, pedi que tentasse de novo. Ele extraiu uma espinha de 5 cm.
Minha intervenção melhorou a química entre nós. A mesma reação catalítica aconteceu quando ajudei minha enteada, aos 29, a pagar seu primeiro aluguel, pois ambos sabíamos que era hora de ela sair do ninho. Dei aos dois o que a maioria dos enteados quer de um padrasto: uma rede, a sensação de que, se começarem a cair ou tentarem voar, estarei lá, se necessário, para pegá-los. Eles também me proporcionaram uma rede. Chama-se família.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

A colunista Rosely Sayão volta a escrever neste espaço em 31/7


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