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MICHAEL KEPP
Uma química nada cósmica
Dois amigos, padrastos por quase uma
década, têm a mesma
reclamação: a relação com seus enteados não satisfaz. "Não há química", diz
um. Quando viraram padrastos, as mulheres rezaram por
uma convivência pacífica com
os filhos. Mas meus amigos
queriam laços mais paternais.
Um reclama que o enteado só
fala de esportes, o assunto de
que menos gosta. O outro resmunga que os enteados se recusam a discutir filmes que vêem
juntos. Ambos sabem que muitos adolescentes vêem os padrastos não como pessoas interessantes, mas como figuras de
autoridade com quem têm só
uma coisa em comum: a mãe.
Mas meu conselho só os afunda
mais na fossa. "Seja paciente",
digo, "essa química não é nada
cósmica e raramente é imediata. Pode levar muito mais tempo, ou nunca aparecer".
Quando comecei a conviver
com meus enteados adolescentes, nossa química foi uma lenta reação em cadeia. Começou
com diálogos que soavam como
debates. Um que ninguém venceu ocorreu quando, após dois
anos lavando louça, pedi que
passassem a ajudar. Meu argumento: eu cansara de ser empregado deles. Sua réplica: um
padrasto não tem o direito de
mudar a divisão de trabalho em
um lar brasileiro, no qual pais
ou empregados fazem tudo.
Então, a mãe deles, que rezava
por uma convivência pacífica,
começou a lavar a louça.
Depois que esses reizinhos
entraram na faculdade, nossos
diálogos ficaram menos contenciosos. Meu enteado, um
pianista, trocava idéias comigo,
mas quase sempre sobre música. Eu e minha enteada, que fez
psicologia, batemos papos sobre tópicos variados, mas nunca por tanto tempo quanto eu
gostaria. Se começo uma história rica em detalhes, diz: "Conte
a versão resumida". Mas aceitei
esses limites e torci para que
fossem ainda mais relaxados.
Com meu enteado, a virada
ocorreu quando uma espinha
de salmão ficou presa em sua
garganta. Eu o levei ao pronto-socorro, e o médico não achou
nada. Disse: "O que seu filho
sente saiu. A sensação é imaginária". Mas a expressão de desconforto dele era real. Recusei-me a aceitar o diagnóstico, pedi
que tentasse de novo. Ele extraiu uma espinha de 5 cm.
Minha intervenção melhorou a química entre nós. A mesma reação catalítica aconteceu
quando ajudei minha enteada,
aos 29, a pagar seu primeiro
aluguel, pois ambos sabíamos
que era hora de ela sair do ninho. Dei aos dois o que a maioria dos enteados quer de um padrasto: uma rede, a sensação de
que, se começarem a cair ou
tentarem voar, estarei lá, se necessário, para pegá-los. Eles
também me proporcionaram
uma rede. Chama-se família.
MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e
Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
A colunista Rosely Sayão volta a escrever neste espaço em 31/7
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