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NEUROCIÊNCIA
Suzana Herculano-Houzel
Jogos de guerra
Ah, a globalização:
ontem estava na
minha casinha, hoje estou nos Estados Unidos cuidando da colaboração entre meu laboratório e o do Jon Kaas, da Universidade Vanderbilt.
Como nas últimas vezes,
ele e sua mulher me hospedam. Enquanto começo a espalhar meus papéis na mesa
da sala e decido por qual artigo começar, Jon cuida da sua
tarefa habitual dos sábados:
assistir aos jogos de futebol
americano na televisão.
Foi assim que descobri que
adoro o jogo. Acho muito
mais divertido do que o nosso futebol, onde um jogo pode se arrastar por mais de
uma hora com a bola rolando
e sem um gol sequer. No futebol americano não tem
enrolação: cada lance é emocionante, sempre tem algo
acontecendo conforme um
time tenta avançar míseros
dez metros com a bola e o outro faz de tudo para impedir.
E ainda tem as peculiaridades das regras. Todas as
regras de esportes são arbitrárias, mas as do futebol
americano têm um objetivo
muito importante: manter
um certo nível de cavalheirismo e gentileza em um jogo
onde o objetivo é derrubar
quem estiver com a bola.
Acho divertidíssimo: não
se pode encostar em quem
estiver de mãos vazias, mas
basta interceptar a bola e você se torna alvo -legítimo!-
de uma dezena de brucutus
vitaminados e protegidos pela versão "light" da armadura
das guerras de outrora.
Por que gostamos tanto de
assistir a embates esportivos? Posso pensar em várias
razões -o prazer de conferir
desempenhos excepcionais
muito além de nossas capacidades cotidianas, a identificação com um jogador ou um
time, o conforto de não precisar se mexer enquanto alguém faz isso por você.
Mas talvez esportes coletivos sejam especialmente
empolgantes porque funcionam como substitutos das
guerras de antigamente para
satisfazer nossos desejos de
sangue (metafórico e nem
tanto) relacionados a dominação, territorialidade e aos
nossos vínculos sociais: o
senso de coletividade e a
identificação com um grupo
junto do qual nos opomos
ao inimigo.
Existe até uma região no
cérebro responsável pela formação desses vínculos sociais: os núcleos septais, bem
na linha média do cérebro.
Além disso, a neurociência já
sabe que somos capazes de
compartilhar do prazer das
pessoas com quem nos identificamos, de modo que o
prazer do seu jogador favorito ao fazer um gol se torna o
prazer do seu sistema de recompensa também -e de
uma nação inteira, quando o
que está em jogo é a honra
nacional. Se não há guerra,
cria-se uma no gramado.
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro
"Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog "A Neurocientista de Plantão" (www.suzanaherculanohouzel.com )
suzanahh@gmail.com
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