São Paulo, quinta-feira, 17 de outubro de 2002
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Hoje, há modelos econômicos que prevêem desde a forma mais eficiente de dar presente de Natal até as características que fazem um casamento dar certo

Prepúcio na cara, menopausa para macho

Um dos mais novos tratamentos antienvelhecimento atende pela inócua sigla TNS. Não ajudaria muito o marketing do produto se sua origem fosse divulgada: TNS vem do prepúcio descartado de operações de circuncisão de recém-nascidos. Através de processos de bioengenharia, o prepúcio dá origem a um creme, por sua vez aplicado à face do usuário. Não estou inventando. Infelizmente.
Na mesma linha, foi descoberta recentemente uma moléstia do homem: a andropausa. É a menopausa do macho. Como homem não menstrua, o diagnóstico da andropausa é mais sutil: se o senhor estiver cansado, ranzinza e sem a mesma disposição dos velhos tempos, corra ao seu médico. Lá ele verificará sua testosterona e, se ela não estiver em nível normal, o senhor receberá um diagnóstico de portador da andropausa. Mas não se aflija, porque a cura é simples: coincidentemente, o laboratório que "descobriu" a dimensão da maladia é o mesmo que inventou a testosterona de aplicação tópica. Basta uma esfregadinha de pomada e sua testosterona deve voltar a níveis normais. Note que "normal", nesse caso, quer dizer o nível de um garoto de 20 anos.
Havia uma época em que a economia cuidava das atividades do mercado, compra e venda, investimento e poupança. Lá pelos anos 60, a escola de Chicago começou a trazer para a esfera econômica aspectos da experiência humana que antes se pensavam intocáveis: saúde, educação, amor, arte, religião. Hoje, há modelos econômicos que prevêem desde a forma mais eficiente de dar presente de Natal até as características que fazem um casamento dar certo. Essa incursão é benéfica; um progresso especialmente no campo de desenho de políticas públicas.
Sua contrapartida é que, ao abrir-se a oportunidade do lucro onde antes só se pensava em salvar vidas, não há mais volta. O espírito empreendedor vai atrás de oportunidades e, quando elas se apresentam, são aproveitadas. Mas nem sempre o que é bom para o indivíduo é bom para todos.
Vejamos o caso da andropausa. Há o risco de o tratamento causar efeitos colaterais (aumenta o câncer de próstata), mas o maior perigo mesmo é dar certo. Imagine que, em vez de termos velhos ranzinzas e cansados, tenhamos octogenários cheios de amor para dar. O impulso pela disseminação dos genes colocará os velhos junto de mulheres bem mais novas. Isso pode acarretar um problema de casamento para homens mais novos e um aumento da incidência de jovens viúvas e filhos precocemente sem pai.
Mais perigosas são as iniciativas para barrar o envelhecimento. O TNS é só um dos instrumentos e, aliás, um dos mais cômicos e inofensivos no esforço de aumentar nossa permanência na Terra. Se esses tratamentos tiverem sucesso -e muitos médicos já acreditam que uma expectativa de vida de 120 anos ou mais não esteja muito longe-, será ótimo se apenas uma minoria adotá-los, mas desastroso se for amplamente acolhido. Porque em um sistema em que as pessoas vivem até os 120 anos, elas teriam de trabalhar até os cem para que o sistema previdenciário não explodisse -entre muitos outros problemas.
Teoricamente, tudo bem. Quando algo faz bem para uma pessoa, mas mal para a sociedade, há razão para que o governo impeça sua prática (caso do uso de drogas leves, por exemplo). Mas veja só o dilema: independentemente da concepção que se tem da natureza humana, as principais correntes da formação do contrato social justificam a criação do Estado como mecanismo para a proteção da vida (Hobbes) e/ou da propriedade privada (Locke). No caso do business da saúde, como justificar uma criminalização que limitaria tanto a extensão da vida quanto, supostamente, sua qualidade? Desmoronará o arcabouço legal da civilização ocidental por obra dos que buscam a juventude eterna?
Provavelmente, não. Afinal, a engenhosidade humana é tal que, maior do que a nossa capacidade para gerar desafios, só mesmo a de superá-los. Mas, caso tudo dê errado e seja mesmo essa a senha para o fim, a epígrafe não terá sido de todo desapropriada para nossa espécie: sacrificaram o bom na busca pelo perfeito.


GUSTAVO IOSCHPE, 25, faz mestrado em desenvolvimento econômico em Yale (EUA); e-mail: desembucha@uol.com.br



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