São Paulo, quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

A humanidade começa na cozinha


[...] Sem a cozinha, teríamos que passar seis horas por dia mastigando para obter energia para manter cérebro e corpo

Fim de ano é época de festejos e comilança, de horas e horas passadas na cozinha preparando ceias, pré-ceias e pós-ceias. Ótimo momento para festejar o que a aquisição da habilidade de usar o fogo para preparar alimentos parece ter nos proporcionado: a humanidade, literalmente. Ou seja, o fato de pertencermos a um novo gênero, "Homo", com um cérebro grande, abarrotado de neurônios.
A invenção parece ter sido de nosso ancestral "Homo erectus", o primeiro em nossa linhagem a gozar de um cérebro bem maior que o de seus antepassados (que tinham apenas tantos neurônios quanto gorilas -cerca de 30 bilhões, segundo estimativas do nosso laboratório). Antes do "H. erectus", nossos ancestrais já comiam carne e dominavam o fogo.
Mas parece que só o "erectus" foi capaz de juntar as duas coisas: usar o fogo para preparar alimentos.
Para o antropólogo Richard Wrangham, a invenção da cozinha tornou possível, pela primeira vez, consumir em tempo hábil o número elevado de calorias necessárias para alimentar um número cada vez maior de neurônios, até chegar em nossos atuais 86 bilhões. Veja só: para manter seu corpo de uns 40 quilos e um cérebro de cerca de apenas 20 bilhões de neurônios, chimpanzés são forçados a passar seis horas por dia mastigando folhas, frutas e raízes e, se comerem carne crua, precisam de uma hora de mastigação para conseguir engolir um bifinho de 300 g.
O problema em comer alimentos crus é que, além da dificuldade de mastigar carnes fibrosas, folhas e raízes duras (o que requer, portanto, um bom tempo), o aproveitamento de energia de alimentos crus é péssimo, bem abaixo das tabelas de valor nutricional que vêm nas embalagens. Os humanos que hoje optam por adotar uma dieta de alimentos crus sofrem as consequências: seu colesterol é saudável, mas eles vivem magros demais, famintos e desnutridos.
Cozida, no entanto, a comida amolece e se torna fácil de mastigar e engolir, pode ser engolida mais rapidamente e a digestão é quase completa, pois as enzimas digestivas ganham acesso fácil ao alimento. Ou seja: consegue-se mais energia em menos tempo. Sem a cozinha, teríamos que passar mais de seis horas por dia mastigando para conseguir a energia necessária para manter cérebro e corpo. Com ela, hoje é possível engolfar as 2.000 calorias necessárias para um dia em meros dez minutos.
Quem diria: de certa forma, a diferença entre nós e os outros primatas é que nós aprendemos a cozinhar...


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com

suzanahh@gmail.com


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