São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp

Soltando as feras


[...] A IMAGEM QUE O FILHO TEM DO PAI PODE BRILHAR MAIS FORTE SE ELE PARAR O CARRO E LEVAR UM VIRA-LATA ATROPELADO AO VETERINÁRIO

Nossas interações com animais, não importando se são breves ou superficiais, podem influenciar como os outros nos vêem. Uma mulher pode ser seduzida pela maneira sensual com a qual um homem acaricia o gato dela. Ou, quando é muito devotada aos animais, pode tomar chá de sumiço se o namorado revela que seu hobby favorito é a caçada. A imagem que o filho tem do pai pode brilhar mais forte se ele parar o carro e levar um vira-lata atropelado ao veterinário.
Anos atrás, a imagem que Rosa, minha mulher, tinha de mim ganhou novas cores durante uma caminhada a uma cachoeira da floresta da Tijuca.
Erramos o caminho e fomos parar nos quintais de cariocas ricos. Logo que vimos a primeira casa, ainda à distância, dois pastores alemães e um vira-lata começaram a latir e a correr em nossa direção. Enquanto corríamos, eles ganhavam terreno.
Peguei um galho longo e pesado. Enquanto os cães -dentes arreganhados, deixando claras as más intenções- chegavam perto, gritei para Rosa que me passasse. Então, quando eu já sentia o bafo do vira-lata na minha batata da perna, parei, virei e, meio desengonçado, segurei o galho como se fosse uma baioneta, soltando um urro que me deixou sem fala por duas semanas. O animal em mim havia sido liberado.
Essa transformação me surpreendeu, já que nunca demonstrara nenhum traço desse tipo de coragem. Também fez com que nossos perseguidores parassem com cara de "o que é isso?". Convencidos de que eu era estranho e imprevisível demais, soltaram mais uns uivos e deram meia-volta. Na cachoeira, Rosa me apertou forte e manteve o abraço por muito tempo. Foi a primeira vez que me senti um anjo da guarda.
Senti isso de novo apenas uma vez. Um mico-estrela bebê caiu do colo da mãe na calçada em frente ao meu escritório, provavelmente quando ela corria por um cabo telefônico. O bebê, que fugiu para o pátio interno do apartamento no subsolo do meu prédio, começou a gritar por ajuda. Mas os pais, empoleirados no cabo, tinham medo do salvamento, que os levaria até o chão. Afinal, com que freqüência vemos micos nas calçadas? Então, passaram a gritar por ajuda também. Eu pareço ter sido o único a decifrar esse drama familiar.
Mas foi o animal ou o humano em mim, ou ambos, que me levou ao subsolo? Com a ajuda do porteiro, joguei um cobertor sobre a criatura e a levei para a floresta do outro lado da rua. O bebê subiu como um raio por uma árvore, enquanto os pais corriam para o abraço.
O porteiro nunca tinha ido muito com a minha cara porque, ao contrário de outros moradores, eu não lhe dava presente de Natal. Para mim, o 13º salário bastava. Também não era o favorito dos seguranças da rua porque me recusava a pagar por seus serviços.
Mas, quando o meu porteiro contou a eles e aos outros porteiros da rua sobre o salvamento, pessoas que nunca tinham me dado "oi" (e vice-versa) passaram a me cumprimentar. Talvez tenham visto que um cara disposto a ajudar um mico desamparado não poderia ser tão ruim.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner



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