São Paulo, quinta-feira, 19 de abril de 2001
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outras idéias

Dinheiro, pra que dinheiro?

MARIO SERGIO CORTELLA

A sedução obssessiva pelo dinheiro é tamanha que a atração que exerce não depende de apelos eróticos, como acontece com outras mercadorias na nossa sociedade

Já pensou? Você recebe neste exato momento o aviso de que ganhou em uma loteria a quantia de 100 milhões de reais! Que delícia, não? Todos os problemas resolvidos, adeus às preocupações, finalmente chegou a sua vez. Passado o primeiro impacto e o alegre desnorteamento, é preciso tomar rápidas providências para aproveitar, proteger e aumentar o que agora é seu.
As providências deverão seguir a seguinte ordem: 1) desaparecer para um local onde ninguém o encontre; 2) não atender ligações de parentes e amigos, próximos ou distantes, dado que "não dá para confiar nesse povo interesseiro"; 3) correr, incógnito, para aplicar o dinheiro, pois ele pode render milhares de reais por dia e ficar parado é arriscar-se a empobrecer; 4) contratar seguranças para você e a família, junto com carros blindados; 5) mudar de casa, indo para um lugar distante, com grades, guaritas e fossos. Aí, sim, bom proveito!
Por isso é preciso prestar atenção num dos ensinamentos proferidos por Alexandre Dumas Filho à Dama das Camélias: "Não estimes o dinheiro nem mais nem menos do que ele vale; é um bom servidor e um péssimo amo".
Dinheiro não é tudo? Dinheiro não traz felicidade? Importa pouco; quase todos querem arriscar para ver se, de fato, esses ditados são verdadeiros. As justificativas são inúmeras; dinheiro, dizem muitos, não cheira nem fede. Aliás, na obra "Vida dos Doze Césares", conta-nos Suetônio que o Imperador Vespasiano, ao ser recriminado por seu filho Tito por estar cobrando tributos pelo uso das latrinas romanas, esfregou no nariz do futuro sucessor um pouco do dinheiro arrecado nesse imposto de origem menos nobre e perguntou se o aroma incomodava. Tito respondeu, sem saída, "Non olet" (Não tem cheiro).
A sedução obsessiva pelo dinheiro é tamanha que a atração que exerce independe de apelos eróticos, como acontece com outras mercadorias na nossa sociedade. O inquietante pensador Millôr Fernandes (no livro "Millôr Definitivo: A Bíblia do Caos") faz uma reflexão extremamente arguta: "É tal a força do dinheiro que, por isso mesmo, é o único veículo de transa social que não utiliza, em sua promoção, imagem de mulher nua ou pelo menos sexy. Você nunca viu papel-moeda com seios, coxas ou bumbuns estampados. Em todo o mundo, as notas só nos mostram escritores barbudos, políticos carecas, santos esquálidos. No máximo, uma rainha Vitória, uma imagem da República bonita, mas machona, ou uma égua acabrunhada montada por um herói oficializado (o que não teve tempo de fugir) (...) Não, o dinheiro não precisa desses reforços afrodisíacos. Formal, careta, feio, sujo, rasgado, colado, ele é sempre mais sexy do que a Marilyn em seus melhores momentos".
Para o amor, porém, o dinheiro tem uma valia relativa; amor de verdade (seja maternal, filial, por uma pessoa, por um lugar, pelo sagrado) dele não depende para existir, a tal ponto que opomos com veemência a ligação entre amor e dinheiro, desconfiando sempre da suposta relação amorosa na qual o dinheiro seja o visgo ou o fermento. Amor assim é entendido como falso amor por ser interesseiro e hipócrita, movido pelo monetário e maculado pela falta daquelas que são as mais fortes marcas amorosas: sinceridade e confiança recíproca.
Romântico e piegas dizer isso? Não tem importância; para além de qualquer filosofia, todo o mundo entende quando, desde o final do anos 60, o Martinho da Vila canta: "Dinheiro, pra que dinheiro, se ela não me dá bola?...".



MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez<

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