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São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

Quase não existe mais o telefonema anônimo. Ligou, o Bina conta. Não dá para mudar de idéia. A não ser que se vá esconder-se dentro de um anônimo orelhão

Modernas Transgressões

Com as máquinas eletrônicas, transformou-se o mundo das transgressões. Faltar, chegar atrasado, aparecer sem ser convidado, dizer mentiras -por inocentes que sejam- continuam na categoria de comportamentos que estão entre mal-educados e puníveis. Atrasar-se não é um delito -um desrespeito tão-somente. O abuso do telefone é mais do que uma mera indelicadeza. O uso incessante do celular em lugares públicos é uma invasão do espaço público que pode tornar-se bastante desagradável. Sobrecarregar a caixa postal com e-mails indesejados, poesias e piadas é visto, por enquanto, como uma chatice. Mas o ponto de vista da motivação de quem telefona ou de quem manda o e-mail indica uma relação complicada com o outro. É comum ouvir falar do chefe ou de qualquer superior insone que telefona a qualquer hora ou qualquer dia. Há a mulher ou o marido que controla o parceiro pelo telefone. Nem estou falando do trote, que é feito para desagradar. Falo da ansiedade que é descarregada pelos dedos nos botões ou nas teclas do computador. Às vezes, eu sonho com as luvas de amianto dos cozinheiros, que servem para não queimar o dedo na panela, mas que impedem de tocar as teclas do telefone.
Já vai longe o tempo em que se punha pimenta nos dedos das crianças para que não roessem as unhas, pois agora precisamos defender o mundo das ligações e do fluxo de comunicação que nasce da ansiedade das pessoas estressadas. É o ímpeto de dizer já. A impossibilidade de esperar. É quando o outro deixa de ser uma pessoa com seu espaço e tempo. O outro torna-se o receptor apenas. Invade-se o território, o tempo e o pensamento do outro para descarregar a ansiedade.
Quando uma pessoa chega atrasada para um compromisso, ela está invadindo a consciência de quem a espera. Este, durante a expectativa da chegada, é tomado pela figura de quem não chega. É também uma invasão. Uma explosão irada também invade o universo do outro. E isso continua assim. O atraso sistemático é uma transgressão na medida em que captura a atenção do outro -não importa o quanto isso possa desorganizar o momento alheio. Some-se a isso esta potência que é o telefone -fixo ou celular. É a conexão permanente. Cada um de nós tem o mundo à sua mercê e está à mercê do mundo. E a tecnologia vai se aperfeiçoando. Quase não existe mais o telefonema anônimo. Ligou, o Bina conta. Não dá para mudar de idéia. A não ser que se vá esconder-se dentro de um anônimo orelhão.
A tecnologia se complica, mas as fantasias de invasão e dominação vão tomando novas formas. É como se existisse uma luta campal, na qual privacidade, angústia, transgressão, agressão estão em permanente jogo de gato e rato. Pela minha experiência, o telefone e suas múltiplas possibilidades é uma necessidade que nos fragiliza. As ondas sonoras descarregam ansiedade num lado do fio e a geram do outro lado. E há o telefone, e a secretária eletrônica, e a caixa postal, e o celular... Não os termos em funcionamento é desrespeito. As pessoas podem precisar nos contatar. Ter tudo em bom funcionamento é estar sendo roubado do sossego e da paz.
Ninguém me telefonou.
Ninguém me telefona.
Não aguento tanto telefonema.
Sim, não, não, sim.
Novas formas de transgressão, fruto de
uma revolução na intersubjetividade.
Eu já vivi e sobrevivi
tendo apenas
telefone de recado no vizinho.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano das Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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