São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2000
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FOCO NELE
Relação médico-paciente influencia cura

quem é ele
Nome: Protásio da Luz
Idade: 60 anos
Profissão: cardiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP
O que faz: é diretor da Unidade da Clínica de Arteriosclerose do Incor
Filosofia de vida: "A comunicação é tão importante para o tratamento quanto a competência médica. Por isso, médicos devem ser curiosos, ter cultura geral, saber conversar tanto com um agricultor quanto com um industrial"
DANIELA FALCÃO - EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO

O cardiologista Protásio da Luz Há duas semanas, o cardiologista Protásio da Luz, 60, recebeu em sua sala no Incor (Instituto do Coração) um paciente que veio do interior de Goiás para tratar uma doença cardíaca. Dez minutos após o início da consulta, o paciente continuava sentado e a maca de exames, intacta.
"Passamos o tempo todo conversando sobre gado de corte", conta Luz, que teve de recorrer às lembranças da infância para abordar um assunto que interessasse ao paciente e, assim, conquistar sua confiança. "Quando o coloquei na maca para começar o exame de verdade, ele disse rindo: "Doutor, de gado o senhor entende, vamos ver de coração". Nessa hora percebi que havia ganho o paciente."
O cardiologista, que é professor da USP e chefia a unidade de arteriosclerose do Incor, acredita que a cura depende do bom relacionamento entre médico e paciente. "É preciso haver confiança. Se o paciente não se sentir confortável para expor ao médico seus medos e dúvidas, o tratamento fica comprometido", adverte. Leia a entrevista abaixo.


"Um corte no tórax não significa nada para o médico, mas é traumático para o paciente. Médicos deveriam ficar doentes de vez em quando para avaliar como se sente quem está do outro lado"

Folha - Por que a relação médico-paciente é tão importante?
Protásio da Luz
- Porque a cura depende dela. A pessoa fica doente por causa de uma alteração orgânica que provoca disfunções que comprometem o funcionamento do corpo. Quando o médico passa a cuidar da alteração, o que era só orgânico sofre influência humana. Para o tratamento dar bons resultados, médico e paciente têm de estar em sintonia e estabelecer um relação de confiança mútua.

Folha - E o que vai determinar uma boa relação médico-paciente?
Luz
- O que mais influencia é a competência do médico. O paciente só segue à risca o que o médico sugere se o considera competente. O segundo ingrediente é compreensão. O médico tem de entender o problema do doente, ter a capacidade de se colocar no lugar e perceber como ele está se sentindo. Infelizmente, a maioria não tem compreensão adequada da extensão da dor, não avalia direito a angústia, a ansiedade e o medo do paciente.

Folha - Quer dizer que o médico tem de ser um pouco analista?
Luz
- Tem, mas não é complicado. Basta lembrar que o paciente está lidando com máquinas, pessoas e procedimentos totalmente desconhecidos. O médico acha tudo normal, banal, seguro e esquece que para o paciente é uma situação novíssima. Um corte no tórax não significa nada para o médico, mas é traumático para o paciente. Médicos deveriam ficar doentes de vez em quando para avaliar como se sente quem está do outro lado.

Folha - O que mais é importante na relação médico-paciente?
Luz
- Como é baseada em confiança, é fundamental o médico ser franco e honesto ao transmitir as informações. O paciente está lidando com algo desconhecido e vai acreditar piamente naquilo que o médico disser. É intolerável mandar o paciente fazer exames desnecessários ou promessas que não poderá cumprir.

Folha - O sr. acha que o médico deve dizer tudo ao paciente?
Luz
- Nem sempre porque seria até desumano. O médico não pode mentir em hipótese alguma, mas dizer toda a verdade é uma coisa discutível. Se tenho um paciente com doença grave, minha obrigação é explicar que o prognóstico é ruim, mas não preciso dizer que ele vai morrer em seis meses. Em primeiro lugar, porque a medicina está avançando num ritmo tão alucinado que, a qualquer momento, pode surgir a cura para a doença que era letal. Em segundo lugar, porque o diagnóstico pode estar errado. Mesmo os médicos mais competentes erram, e não é justo condenar a pessoa a viver sob uma sentença de morte.

Folha - Mas, se omitir essa informação, o paciente não pode se sentir enganado?
Luz
- Não se ele perceber que você está se empenhando ao máximo. Na cultura brasileira, o hábito de dizer toda a verdade não dá certo. Nos EUA, onde já trabalhei por cinco anos, funciona. Aqui, não.

Folha - Por que ocorrem tantos mal-entendidos entre médicos e pacientes?
Luz
- Porque a comunicação é malfeita. Se o médico gastar 15 minutos explicando só termos técnicos da doença, o paciente vai sair sem saber nada. Se ele fala sem clareza e o paciente se sente constrangido de perguntar, não há diálogo. Médicos precisam explicar como é cada procedimento e para que serve.

Folha - As escolas de medicina ensinam os alunos a desenvolver essas habilidades?
Luz
- Muito pouco. Já se discute a importância de investir na formação geral do médico, mas ainda é um movimento embrionário. O aluno precisa ter uma cultura geral ampla porque ele vai ter de lidar diariamente com pessoas de origens e níveis socioeconômicos muito distintos e precisa se fazer compreender por todos. Se fala com um agricultor, é bom saber alguma coisa sobre lavoura para criar cumplicidade e até fazer paralelos com a doença. No mesmo dia, pode atender um industrial e terá de utilizar outra linguagem, falar de outros assuntos. Só assim consegue a intimidade necessária para que o paciente exponha problemas pessoais fundamentais para compreender a evolução das doenças.

Folha - A culpa então é das faculdades?
Luz
- Em parte. As condições de funcionamento do sistema de saúde hoje, tanto público quanto particular, exercem uma pressão econômica muito forte em cima do médico para que aumente a produtividade e tudo termina sendo feito às pressas. O médico cuida das doenças, em vez de cuidar das pessoas.


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