São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2006
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outras idéias

Dulce Critelli

Liberdade seqüestrada

O saldo desses novos ataques da quadrilha que apavora São Paulo foi a revelação de que as comunidades do crime já não roubam apenas nosso dinheiro ou nossos bens. Elas roubam também nossa liberdade e nossa cidadania.
As organizações criminosas regulam nossos direitos básicos, como o de ir e vir -sair de casa para o mundo, para encontrar pessoas. E, como não há, na nossa tradição, nada que nos capacite a lidar com o crime, respondemos a ele com perplexidade e impotência.
A liberdade não é um atributo da natureza humana nem é individual. Ela não é interna, não é psicológica e não é uma escolha comandada pela consciência. A liberdade é uma experiência. É uma qualidade do agir humano e só se realiza num espaço público e na relação com outros homens. Fora da ação, a liberdade é um sonho, uma aspiração, uma potência, mas não é concreta.
Ao longo da história, as guerras de conquista e as dominações entre os povos foram interferindo nesse espaço público, em que a liberdade podia acontecer, tornando-o mais restrito, quando não completamente suprimido. Para compensar essa perda, a liberdade foi sendo acuada nos limites de uma ação individual.
Epiceto (55 d.C.), por exemplo, filósofo que viveu na época em que a Grécia estava sob o domínio de Roma, passou a afirmar que "livre é aquele que vive como quer". E, mais tarde, na Era Moderna, com o espaço público da liberdade ainda mais cerceado, inventou-se a "interioridade", um espaço dentro dos indivíduos onde eles poderiam se sentir livres das opressões externas.
A liberdade sempre foi condição da cidadania. Sempre foi uma questão de acordo ou de luta entre os cidadãos e os governos. A função dos governos, até o século 17, era a de proteger (ou cercear) a liberdade dos indivíduos. A partir de então, tornou-se a de garantir a segurança das pessoas -sua vida e a satisfação de necessidades vitais.
No século passado, os regimes totalitários (nazismo, stalinismo, fascismo) romperam com a tradição da função dos governos de proteger a liberdade ou a segurança, usando o terror para aniquilar ambas.
No Brasil, nossa última experiência de cerceamento da liberdade foi nos anos 60 e 70, com a ditadura militar, que nos confinava a nossas casas, vigiava nossas ações e palavras e nos impunha o isolamento.
Mas o que vivemos nestes dias é mais grave porque introduz uma situação absolutamente nova na história. O poder sobre a liberdade deixa de ser pessoal e nem é mais político. Esse poder é do crime.


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br

[...] Como não há nada que nos capacite a lidar com o crime, respondemos a ele com perplexidade e impotência

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