São Paulo, quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
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Outras idéias - Dulce Critelli

Para poder ver o mar

Passei alguns dias das minhas férias no litoral norte de São Paulo. Lindo mar, lindas praias! Fiquei em Camburizinho. Estranhei um pouco estar num lugar onde a praia é oculta pelos muros altos dos condomínios.
Revisitei arredores, Baleia, Barra do Sahy, Juquehy... todos com o mesmo princípio de ocupação. Em Maresias, então, nem deu para sair do carro. Nenhum lugar para parar e tomar sossegada um café ou um sorvete. Mas vendo o mar. E era só o que eu queria, ver o mar.
A única rua, que é também a estrada, está fechada à direita e à esquerda pelos mesmos muros altos, sólidos, armados de guaritas. Sentimentos misturados. Eu era uma intrusa. Sem carteirinha do clube, uma excluída. Eu era uma ameaça. Mas também me senti ameaçada ao passar no meio daquilo que me lembrou um "corredor polonês".
A vida moderna é assim, "condominizada". Cheia de encantos. Mas encantos privados e agressivamente defendidos. Depois veio o Carnaval. Não sou foliona, vi alguma coisa pela televisão. E não é que a festa já não é mesmo mais popular?
São Paulo e Rio têm condomínio fechado para o samba. As arquibancadas dos sambódromos são parecidas com os muros dos condomínios nas praias. Em Salvador, tem que comprar abadá, entrada para os blocos. Mas ali os muros são feitos de homens fortes segurando a pressão de quem não tem passe. Tanto faz. Quer brincar?
Então se submeta. Compre fantasia, compre carteirinha. Brincadeira de Carnaval hoje tem dono: blocos e escolas. Até a música de Carnaval não é mais marcha, é coisa padronizada, é enredo.
O Carnaval também é "condominizado". Tudo tem regra, espaço prescrito e vigiado, hora marcada. E avaliação!!!
Acho que a avaliação estraga tudo. Lembra, há uns dois ou três anos, que não deixaram as mulheres da velha-guarda da Portela desfilar? O tempo estava em cima e senhoras de idade dançam devagar. Não pode, não, porque a escola vai perder pontos.
E o que teria mais graça e beleza para o público, as velhas senhoras ou o prazo cumprido? Mas, se não avalia e não tem nota alta, quem é que paga a conta? Quem patrocina o próximo ano? Dá para entender, na prática, o poder e a força do capital privado. Na praia, no Carnaval, na moradia.... mas também na escola, na saúde, no esporte...
Quem paga manda. E organiza, fecha, abre, vigia, controla... Mas tudo oficializado. Quer dizer, com método e burocracia. A mesma burocracia que regula os desfiles regula também o nosso prazer e a nossa participação. Regula tudo. Regula quem tem voz e voto. Quem tem casa e comida. Regula quem pode brincar. E ver o mar...


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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