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Outras idéias - Dulce Critelli
Para poder ver o mar
Passei alguns dias das
minhas férias no litoral norte de São Paulo.
Lindo mar, lindas
praias! Fiquei em Camburizinho. Estranhei um pouco estar
num lugar onde a praia é oculta
pelos muros altos dos condomínios.
Revisitei arredores, Baleia,
Barra do Sahy, Juquehy... todos
com o mesmo princípio de ocupação. Em Maresias, então,
nem deu para sair do carro. Nenhum lugar para parar e tomar
sossegada um café ou um sorvete. Mas vendo o mar. E era só
o que eu queria, ver o mar.
A única rua, que é também a
estrada, está fechada à direita e
à esquerda pelos mesmos muros altos, sólidos, armados de
guaritas. Sentimentos misturados. Eu era uma intrusa. Sem
carteirinha do clube, uma excluída. Eu era uma ameaça.
Mas também me senti ameaçada ao passar no meio daquilo
que me lembrou um "corredor
polonês".
A vida moderna é assim,
"condominizada". Cheia de encantos. Mas encantos privados
e agressivamente defendidos.
Depois veio o Carnaval. Não
sou foliona, vi alguma coisa pela televisão. E não é que a festa
já não é mesmo mais popular?
São Paulo e Rio têm condomínio fechado para o samba. As
arquibancadas dos sambódromos são parecidas com os muros dos condomínios nas
praias.
Em Salvador, tem que comprar abadá, entrada para os blocos. Mas ali os muros são feitos
de homens fortes segurando a
pressão de quem não tem passe. Tanto faz. Quer brincar?
Então se submeta. Compre fantasia, compre carteirinha. Brincadeira de Carnaval hoje tem
dono: blocos e escolas. Até a
música de Carnaval não é mais
marcha, é coisa padronizada, é
enredo.
O Carnaval também é "condominizado". Tudo tem regra,
espaço prescrito e vigiado, hora
marcada. E avaliação!!!
Acho que a avaliação estraga
tudo. Lembra, há uns dois ou
três anos, que não deixaram as
mulheres da velha-guarda da
Portela desfilar? O tempo estava em cima e senhoras de idade
dançam devagar. Não pode,
não, porque a escola vai perder
pontos.
E o que teria mais graça e beleza para o público, as velhas
senhoras ou o prazo cumprido?
Mas, se não avalia e não tem
nota alta, quem é que paga a
conta? Quem patrocina o próximo ano? Dá para entender, na
prática, o poder e a força do capital privado. Na praia, no Carnaval, na moradia.... mas também na escola, na saúde, no esporte...
Quem paga manda. E organiza, fecha, abre, vigia, controla... Mas tudo oficializado.
Quer dizer, com método e burocracia.
A mesma burocracia que regula os desfiles regula também
o nosso prazer e a nossa participação. Regula tudo. Regula
quem tem voz e voto. Quem
tem casa e comida. Regula
quem pode brincar. E ver o
mar...
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia - Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
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