São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 2006
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S.O.S. família - Anna Verônica Mautner

Na dança dos ritmos

Não sei como se poderia transmitir diretamente às crianças uma mensagem que me parece cada dia mais necessária e oportuna. Vivemos pressionados pela concomitância de um sem-número de universos rítmicos, obrigando-nos a readaptações para que possamos acompanhar o tempo do funcionamento telefônico, do zapping na televisão, da chama do fogão, da velocidade com que lemos, do ritmo em que respiramos etc. Como educar para que essa pressão não seja insuportavelmente insalubre?
Não se trata só de uma diferença entre animados e inanimados. O tempo das plantas e o dos animais também diferem entre si e, assim como nós, eles também não são capazes, felizmente, de se adaptarem a cada invenção que aparece e que obriga obediência a velocidades externas a nós. Os ciclos de vida passam por mutações, mas isso ocorre lentamente. Nada parecido com o lançamento de celulares, de TVs e de outras obras tecnológicas.
Vivendo como vivemos, no meio desses estímulos todos, senti necessidade de um oásis onde pudesse ficar em harmonia e previsibilidade. No meu apartamento, criei um terraço/estufa onde flores e folhagens são benquistas. Algumas plantas de jardim entram na moda enquanto outras vão saindo. Não sei a que critérios essas mudanças obedecem, mas que "los hay los hay", e assim é a vida.
Ladrilhei um pedaço da sala rente a uma grande janela e lá coloquei meus quase inúmeros vasos. Faço questão de não comprar plantas, prefiro ganhar mudas ou catá-las pelo mundo. Usar sementes também me agrada.
Tenho melindres, cujas mudas não sei donde vieram, mas que vivem felizes, apesar de terem se tornado raras pelo mundo afora. Minhas avencas viram praga, dão em todos os vasos, espalhando-se. Por algum motivo secreto, não tenho mais samambaia de metro. Tenho um pouco de renda portuguesa e também azaléias cujas flores enfeitam meus invernos. Tenho ainda capim-limão, para fazer chá no tempo de frio. Não falta mirra, que deixa no ar um discreto cheiro de sacristia.
Nos mesmos quatro metros, vivem bromélias, pelas quais nem sou muito apaixonada, mas que, já que lá estão, ficam. Entre elas, há algumas especiais, às quais me aplico para fazê-las se multiplicarem. São rasteiras e cor-de-rosa. Não sei de onde trouxe a primeira, hoje já são mais de dez.
Desconheço o nome de uma porção de outras plantas que trouxe das muitas serras e estradas por onde parei o carro só para catá-las. Nesses meus quatro metros, mandam elas, as plantas. Eu apenas cuido, observo e obedeço. O ritmo nada tem a ver com a vida de eletrônicos, digitais ou analógicos que me rodeiam.
Minhas plantas constituem meu contraponto à modernidade que me soterra. Quisera que as crianças vivessem conscientemente essas rupturas e que pudessem aprender a perceber que ilhas de harmonia são possíveis e podem ser criadas. Um dos exercícios comuns que as escolas proporcionam para as crianças é a famosa plantinha de feijão no algodão.
Aí podem observar como germina e se transforma semente em planta e, tendo paciência, em uma nova semente. Em outras escolas, fazem-se pequenas hortas e jardins. Essas são práticas antigas -já existiam no meu tempo! Sugiro que hoje a ênfase seja em mostrar que, assim como a planta é autônoma e independente das mudanças tecnológicas, nós também podemos sê-lo até certo ponto.
Para a nova geração, não basta admirar o milagre da natureza, é preciso apontar que nós também, como ela, podemos resistir. E viva a biodiversidade dos ritmos do mundo!


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

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