São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2010
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CORRIDA

RODOLFO LUCENA - rodolfo.lucena@grupofolha.com.br

Palavra de rei também volta atrás


O corredor fica preso em armadilhas que ele mesmo cria. Mas a ninguém é proibido repensar, reconsiderar

PARA o mundo das corridas, aquele foi o dia mais triste do ano. Com dores no joelho direito, o recordista mundial da maratona abandonou a prova de Nova York. Mais tarde, ainda abalado pela frustração na maior e mais importante maratona do mundo, o etíope Haile Gebrselassie anunciou sua aposentadoria.
"É hora de deixar os jovens atletas correrem. Não quero voltar a me queixar a partir de agora", disse ele.
Corredores, empresários, patrocinadores, organizadores de corridas e fãs entraram em polvorosa; analistas avaliavam o peso da decisão, faziam prognósticos. E o próprio Haile sofria com suas palavras de abandono.
A resolução durou pouco.
Uma semana depois, o corredor reconsiderou e colocou a boa nova em sua página no Twitter: "Correr está no meu sangue, e eu decidi continuar competindo. O anúncio que fiz em Nova York foi minha primeira reação depois de uma prova desapontadora".
O episódio não mostra apenas que palavra de rei também volta atrás. Também deixa evidente que mesmo os superatletas se debatem com dúvidas que nos assolam: o que fazer, para onde ir, a quem querer. Acima de tudo, ensina que a ninguém é proibido repensar, rever, reconsiderar, refazer.
Isso é difícil para o corredor. O caminho de quem corre é para frente, perna atrás de perna, demonstração da vontade inabalável de seguir. Por isso, não poucas vezes o corredor se vê enjaulado em armadilhas que ele mesmo cria, por decisões que julga talhadas no granito, imutáveis.
Há quem decida participar de todas as provas de um circuito, mesmo que o resultado no fim do ano sejam dores e lesões. Há quem prefira arrastar as pernas até o final de intermináveis quilômetros simplesmente porque nunca abandonou uma corrida ou porque disse que iria até o fim. Há quem corra gripado, fraco, doente, tudo por causa de um pedaço de papel: "Ah, agora já estou inscrito".
Esse mesmo ânimo tem seu reverso brutal, como demonstrou Haile. Um treino fracassado, um tempo abaixo do esperado, uma dor a mais que se manifesta e o mundo está perdido. Não dá mais, há que parar, assim não é possível, desse jeito não vale a pena...
Para o bem ou para o mal, o corredor parece estar sempre às voltas com decisões definitivas, finais, irrecorríveis.
Pois lhe digo: não são. A todos é lícito revisitar ideias, rever conceitos. O percurso da maratona da vida não é uma linha reta, mas um trajeto que construímos com idas e vindas, avanços e recuos, uma passada de cada vez.

RODOLFO LUCENA , 53, é editor do caderno Tec e do blog +Corrida (maiscorrida.folha.com.br), ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (Record)


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