São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2004
Texto Anterior | Índice

outras idéias

Anna Veronica Mautner

É verdade ou é mentira?

A gente sabia que o saci-pererê não existia. Como hoje sabemos que muitas imagens da televisão são montagens e nem por isso deixamos de chorar ou rir

Podemos até pensar que deixamos para trás nossas raízes rurais, flores do asfalto que somos. Creiam-me -em pleno século 21, temos o campo arraigado no dia-a-dia. Nas canções de ninar, falamos de sapo-cururu com frio, de rosas despetaladas em brigas mortais com malvados cravos, em cuca que pega criança que reluta em dormir. Hoje nem sei mais se os bois pretos ainda fazem careta e se isso assusta as criancinhas, mas continuamos cantando. Doce incerteza. Não descremos nem cremos que manga com leite mata, que lobisomem aparece à meia-noite de sexta-feira e que vento levanta poeira para deixar o saci-pererê fugir.
Isso tudo, assim impresso no jornal, parece ingênuo, mas quebra a dureza das certezas que jazem sobre o rígido asfalto. Nossas almas precisam dessas inocentes ambigüidades, uma espécie de sal da terra. Por isso não perdemos tempo para comprovar se dá ou não azar passar debaixo da escada e se é necessário bater três vezes na madeira para evitar o quebranto.
Falta ao mundo urbano-industrial graça e cor. Já, nas superstições e ilusões, sobra colorido, luxo e riqueza.
No mundo do campo, o ar está cheio de barulhinhos. Lembro-me de dar voltas em torno de pé de mexerica procurando a melhor e a mais linda. Escolhida, uma forcinha e "ploc", a mexerica está na mão, já separada do caulezinho, seu cordão umbilical. Na mexerica madura, a casca se desprende no momento do "ploc" e depois... só o barulhinho de cuspir o caroço para longe. Já a jabuticaba, rainha do imaginário infantil, é bem diferente. Seu cordão umbilical é curtinho e fraquinho. Silencioso. O primeiro ruído é na boca mesmo, como tão bem descreveu Monteiro Lobato. É um "ploc" que ressoa pela cabeça inteira. E que bom que é fazer "tic-tic-tic" no galhinho da folha da parreira quando a gente morde para sugar seu azedinho!
Mas nem tudo na natureza são flores. Comer goiaba no pé é bom, mas nos avisavam: "Coma com atenção, porque pode ter bicho quando madura e dar dor de barriga se comida verde". E as amoras? Essas são silenciosas e suculentas, porém perigosíssimas: mancham a roupa para valer. E mãe que é mãe não perdoa mancha na roupa. Goiaba, amora e pitanga sempre deram como praga por aqui. Não precisa plantar. Pode ter em todo quintal. Não pede água nem adubo. Em quintal úmido, ainda podemos encontrar o sapo, nojento e perigoso, pois, ameaçado, urina nos nossos olhos e nos deixa cegos. (Será verdade? Será mentira? Eu é que não vou testar!)
Os barulhinhos da natureza não perturbam nossos sentimentos e deixam muita saudade. Lá, nas nossas raízes rurais, ainda estão cigarras, vaga-lumes, besouros que atravessam a garoa espalhando seus ecos e seus ruídos. E a garoa, onde é que foi parar? O que já foi parte da vida hoje está confinado a alguns bairros, quintais ou zonas de muito mato. São resíduos de nossa pré-história que até confundimos com seres imaginários.
O outro lado do nosso "eu" procura certezas. Aparentemente, vivemos querendo nos desfazer de toda e qualquer ambigüidade. Nem acreditamos mais nas informações reais que nosso corpo nos dá. Para saber se está frio ou calor, muitas vezes recorremos aos serviços de informação por telefone, ao rádio ou à televisão. E até vamos ao termômetro para confirmar se estamos sentindo certo.
No fundo, sempre se desconfiou da pretensa incompatibilidade da manga com o leite. A gente sabia que o saci-pererê não existia, assim como o lobisomem e o boi da cara preta. Assim como hoje sabemos que muitas imagens da televisão são montagens e nem por isso deixamos de chorar ou rir. A maldade embutida nas canções de ninar e nos seres imaginários assustavam tanto quanto a ficção trazida pela televisão.
Procuramos tornar o mundo asséptico. Isolamo-nos de muitos ruídos naturais, de muitos cheiros da natureza e de suas variações. A natureza se afasta do asfalto, assim como o sereno, a friagem da noitinha e a garoa. Ficamos cada vez mais à mercê dos ruídos criados por nós mesmos, pela nossa cultura. Nós, homens, vivemos inventando moda, fugindo da repetição, esquivando-nos das tradições. Dos velhos queremos cada vez menos ensinamentos. Deles queremos mais lendas e superstições. Com o pé fincado no asfalto que nos separa da terra, procuramos meios de nos defendermos da poluição do ar, da poluição sonora. Não são mais os besouros, os morcegos ou as cobras que nos ameaçam.
As tradições, lendas e superstições são hoje mantidas não só na voz e na memória de quem nos relata histórias como em CDs, vídeos e DVDs, onde vamos reencontrar os príncipes, as fadas, as figuras mitológicas. Eis a tecnologia realimentando nossas raízes rurais.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


Texto Anterior: Autobronzeador é opção segura para a pele
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.