|
Texto Anterior | Índice
outras idéias
Anna Veronica Mautner
É verdade ou é mentira?
A gente sabia que o saci-pererê não existia. Como hoje sabemos que muitas imagens da televisão são montagens e nem por isso deixamos de chorar ou rir
Podemos até pensar que deixamos para trás nossas raízes rurais, flores
do asfalto que somos. Creiam-me -em pleno século 21, temos o
campo arraigado no dia-a-dia. Nas canções de ninar, falamos de sapo-cururu com frio, de rosas despetaladas em brigas mortais com malvados
cravos, em cuca que pega criança que reluta em dormir. Hoje nem sei mais se
os bois pretos ainda fazem careta e se isso assusta as criancinhas, mas continuamos cantando. Doce incerteza. Não descremos nem cremos que manga
com leite mata, que lobisomem aparece à meia-noite de sexta-feira e que
vento levanta poeira para deixar o saci-pererê fugir.
Isso tudo, assim impresso no jornal, parece ingênuo, mas quebra a dureza
das certezas que jazem sobre o rígido asfalto. Nossas almas precisam dessas
inocentes ambigüidades, uma espécie de sal da terra. Por isso não perdemos
tempo para comprovar se dá ou não azar passar debaixo da escada e se é necessário bater três vezes na madeira para evitar o quebranto.
Falta ao mundo urbano-industrial graça e cor. Já, nas superstições e ilusões, sobra colorido, luxo e riqueza.
No mundo do campo, o ar está cheio de barulhinhos. Lembro-me de dar
voltas em torno de pé de mexerica procurando a melhor e a mais linda. Escolhida, uma forcinha e "ploc", a mexerica está na mão, já separada do caulezinho, seu cordão umbilical. Na mexerica madura, a casca se desprende no
momento do "ploc" e depois... só o barulhinho de cuspir o caroço para longe.
Já a jabuticaba, rainha do imaginário infantil, é bem diferente. Seu cordão
umbilical é curtinho e fraquinho. Silencioso. O primeiro ruído é na boca
mesmo, como tão bem descreveu Monteiro Lobato. É um "ploc" que ressoa
pela cabeça inteira. E que bom que é fazer "tic-tic-tic" no galhinho da folha da
parreira quando a gente morde para sugar seu azedinho!
Mas nem tudo na natureza são flores. Comer goiaba no pé é bom, mas nos
avisavam: "Coma com atenção, porque pode ter bicho quando madura e dar
dor de barriga se comida verde". E as amoras? Essas são silenciosas e suculentas, porém perigosíssimas: mancham a roupa para valer. E mãe que é mãe
não perdoa mancha na roupa. Goiaba, amora e pitanga sempre deram como
praga por aqui. Não precisa plantar. Pode ter em todo quintal. Não pede água
nem adubo. Em quintal úmido, ainda podemos encontrar o sapo, nojento e
perigoso, pois, ameaçado, urina nos nossos olhos e nos deixa cegos. (Será
verdade? Será mentira? Eu é que não vou testar!)
Os barulhinhos da natureza não perturbam nossos sentimentos e deixam
muita saudade. Lá, nas nossas raízes rurais, ainda estão cigarras, vaga-lumes,
besouros que atravessam a garoa espalhando seus ecos e seus ruídos. E a garoa, onde é que foi parar? O que já foi parte da vida hoje está confinado a alguns bairros, quintais ou zonas de muito mato. São resíduos de nossa pré-história que até confundimos com seres imaginários.
O outro lado do nosso "eu" procura certezas. Aparentemente, vivemos
querendo nos desfazer de toda e qualquer ambigüidade. Nem acreditamos
mais nas informações reais que nosso corpo nos dá. Para saber se está frio ou
calor, muitas vezes recorremos aos serviços de informação por telefone, ao
rádio ou à televisão. E até vamos ao termômetro para confirmar se estamos
sentindo certo.
No fundo, sempre se desconfiou da pretensa incompatibilidade da manga
com o leite. A gente sabia que o saci-pererê não existia, assim como o lobisomem e o boi da cara preta. Assim como hoje sabemos que muitas imagens da
televisão são montagens e nem por isso deixamos de chorar ou rir. A maldade embutida nas canções de ninar e nos seres imaginários assustavam tanto
quanto a ficção trazida pela televisão.
Procuramos tornar o mundo asséptico. Isolamo-nos de muitos ruídos naturais, de muitos cheiros da natureza e de suas variações. A natureza se afasta
do asfalto, assim como o sereno, a friagem da noitinha e a garoa. Ficamos cada vez mais à mercê dos ruídos criados por nós mesmos, pela nossa cultura.
Nós, homens, vivemos inventando moda, fugindo da repetição, esquivando-nos das tradições. Dos velhos queremos cada vez menos ensinamentos.
Deles queremos mais lendas e superstições. Com o pé fincado no asfalto
que nos separa da terra, procuramos
meios de nos defendermos da poluição do ar, da poluição sonora. Não são
mais os besouros, os morcegos ou as
cobras que nos ameaçam.
As tradições, lendas e superstições
são hoje mantidas não só na voz e na
memória de quem nos relata histórias
como em CDs, vídeos e DVDs, onde
vamos reencontrar os príncipes, as fadas, as figuras mitológicas. Eis a tecnologia realimentando nossas raízes
rurais.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br
Texto Anterior: Autobronzeador é opção segura para a pele Índice
|