São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
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OUTRAS IDEIAS

Michael Kepp

Quase verdade


[...] POSSO DIZER QUE MEU SOTAQUE É TÃO PESADO QUE, JOGADO DE UM PRÉDIO, MATARIA UM POODLE

A recente minissérie da HBO "John Adams" termina com o segundo presidente americano refletindo em seu leito de morte que, naquele mesmo dia, 50 anos antes, 4 de julho de 1776, o Congresso aprovara a Declaração de Independência.
Adams se lembra de ter convencido Thomas Jefferson a escrever e o Congresso a adotar esse documento que rompia com o Império Britânico e afirmava o direito de revolução. E morre sem saber que Jefferson havia morrido horas antes.
Mas o cético em mim pergunta: "Será que dois pais da Revolução Americana, protagonistas do documento histórico que a instigou, morreram com horas de diferença no seu cinquentenário? Ou a HBO distorceu fatos?" "Não", mostrou uma pesquisa no Google.
Meu ceticismo foi alimentado por outras tele e cinebiografias em que personagens e eventos são modificados para temperar a trama ou proteger alguém. O autor da minissérie "Maysa" trocou Nara Leão por uma atriz loura na personagem que disputou com Maysa Matarazzo o amor de Ronaldo Bôscoli. Também culpo por meu ceticismo escritores de memórias, como James Frey, que inventou partes cruciais de "Um Milhão de Pedacinhos", best-seller sobre seu vício em drogas, e ensaístas autobiográficos, como David Sedaris, da "New Yorker", que admite exagerar, especialmente em diálogos.
Frey diz que memorialistas mudam fatos para efeito literário. Sedaris, que os muda para efeito cômico, diz à revista "Time" que "se o que escrevo é 97% verdadeiro, é verdade suficiente. Não vou chamar de ficção só porque 3% não são verdadeiros". A regra dos 97% não liberaria outro ensaísta para chamar de não-ficção algo que é 90% ou até 75% verdade?
Escritores de não-ficção podem distorcer a verdade? Posso dizer que meu sotaque é tão pesado que, jogado de um prédio, mataria um poodle. Por quê?
Falo metaforicamente. Posso escrever que minha dança desengonçada numa festa me fez o centro das atenções, mesmo que um casal não tenha me notado. Por quê? "Centro das atenções" é figura de linguagem, usada para dar ênfase.
Mas não posso inventar a festa. Talvez Sedaris possa porque chama os eventos em seus ensaios de "realish" (quase reais).
O satirista da TV americana Stephen Colbert criou outro termo para essas liberdades: "truthiness" -inferindo que algo é verdade desde que você deseje. Cita a racionalização de Bush para invadir o Iraque como exemplo porque ele não permitiu que os fatos interferissem em suas intenções.
Quando um presidente inventa fatos, as consequências podem ser catastróficas. Mas todas as mentiras geram desconfiança. Por isso, pesquisei no Google para verificar a data da morte de Adams e Jefferson.
Essas coincidências raras acontecem. Na ficção, seriam implausíveis demais. Ou como o escritor americano Mark Twain escreveu: "A verdade é mais estranha que a ficção. A ficção precisa ser fiel às possibilidades, a verdade não."


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 26 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

mkepp@terra.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner


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