São Paulo, quinta-feira, 22 de janeiro de 2009
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ANNA VERONICA MAUTNER

Treinar para o novo mundo


[...] ELIMINAR O RASCUNHO, AS AULAS DE CALIGRAFIA, O ALINHAVAR DAS ROUPAS SÃO DETALHES DE UMA VIDA, MEROS DETALHES

Vivemos na encruzilhada de um mundo por vir, que já se está fazendo sentir. Educar para viver nesses dois mundos não é tarefa para qualquer um. Alguns hábitos e costumes mudaram radicalmente nos últimos 40 anos. Vou trazer à baila algumas operações que ou caíram em desuso ou mudaram de sentido.
Por exemplo: alinhavar. Não passava pela cabeça de nenhum alfaiate ou costureira deixar de alinhavar o que posteriormente seria montado. Experimentava-se alinhavado, tipo de costura que podia ser desmanchado com um puxão de linha. A máquina de costura só entrava depois que a peça tinha passado pela prova no corpo. Uma vez aprovada a altura e a exatidão da dobra, a roupa podia ser costurada em definitivo. Vamos dizer que o alinhavar era para a costura aquilo que o rascunho é para o texto.
O sentido do rascunho era o de permitir correção. Não só permitir como prever. A primeira forma de um trabalho dificilmente pode ser vista como definitiva. Portanto, a primeira formatação é sujeita a modificações e correções. Todos os alunos tinham cadernos de rascunhos na escola; era o tempo em que tomavam ditado, passavam a matéria a limpo.
Rascunho não existe mais, assim como caiu em desuso a borracha. Além disso, a nota de "ordem", que eu saiba, desapareceu do boletim -ordem deixou de ser importante. Esses fatos aparentemente banais são importantes e influem em todo o processo educacional. A apresentação de um texto mal-ajambrado depõe contra seu conteúdo e leva o leitor a certa desconfiança.
Outros hábitos foram afetados nos últimos tempos. A alimentação foi especialmente transformada. Raramente encontramos casa de filha onde se come como se comia na casa da mãe. Até o dia da faxina fica diferente. Há duas gerações, filha carregava a cultura de sua casa de origem para sua casa nova com pouca discussão. Os hábitos do novo lar eram competência da dona-de-casa, que continuaria a distribuição de trabalho da sua casa de origem.
Tudo isso parece pouco importante. Afinal, eliminar o rascunho, as aulas de caligrafia, o alinhavar das roupas, manter as tradições de família na cozinha são detalhes de uma vida, meros detalhes. Eu digo que são detalhes estruturantes que vão influir pesadamente no todo das relações de poder.
Respeitar o leitor, a professora, a si próprio e também -por que não?- o poder da mulher na família acaba sendo uma nova forma de viver. Por outro lado, prezar-se, levar-se a sério faz parte da relação com a autoestima. A possibilidade e a necessidade de encarar o que faz, prestar atenção, corrigir uma relação importante consigo mesmo. O alinhavar e o rascunho mostram que acho importante o que estou fazendo e, por isso, presto atenção, corrijo, refaço porque me dou o devido valor.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Rosely Sayão volta a escrever em 29/1


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