São Paulo, quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
Próximo Texto | Índice

Outras idéias - Dulce Critelli

Decifra-me ou te devoro


[...] Mesmo que entenda suas razões, o fato de alguém poder, deliberadamente, praticar o mal nos tira a esperança


Ainda uma vez, João Hélio. Ainda muita perplexidade diante da sua morte brutal. Por que ele foi assassinado assim? Se os jovens sabiam que arrastavam o menino, por que não pararam? Medo de serem detidos e linchados? Puro descaso? Insensibilidade?
O que leva pessoas a escolher cometer o mal? Mesmo que compreenda suas razões, o fato de alguém poder, deliberadamente, praticar o mal desacorçoa, nos tira a esperança.
A capacidade de fazer o mal, potencializada pela arma e pelo carro, ostentou seu poder de nos arrastar e destroçar. Sobrepôs o poder do crime de escarnecer à aparente inocência e fragilidade de todos nós.
Sinto-me vivendo numa daquelas tragédias gregas, como Édipo Rei, em que se descreve uma cidade dominada pelo mal. No caso, a esfinge, que devorava os que não a decifravam. Édipo era o estrangeiro que, sem familiaridade com a rendição dos cidadãos de Tebas, consegue compreender e derrotar o mal (a esfinge) e torna-se o herói que livra a cidade.
Também temos nossa esfinge, pela qual vivemos coagidos, mas já meio acostumados: a violência, a guerra civil no Rio, as guerras no Oriente Médio, o desequilíbrio do meio ambiente, o desemprego, a miséria em expansão, a falta de projeto ético e político, a globalização da economia, as milhares de pessoas que na África morrem de fome e de Aids, as milhares de pessoas seqüestradas e mortas por organizações criminosas na Colômbia -e no Brasil...
Nossa esfinge nos intimida e provoca nossa indignação, mas também cai sobre nós com um peso tal que nos deixa exauridos e inativos. E, agora, o Carnaval vai nos fazer mudar de assunto e esquecer rápido. Nosso coração não consegue senão ser tocado de leve, tão de leve, que qualquer simples desabafo nos alivia e dá a ilusão de que fizemos alguma coisa.
O crime desses jovens ocorreu aproveitando uma oportunidade de há muito aberta. O ambiente no Rio é propício, a época é propícia, nosso medo e impotência são propícios, nosso individualismo é propício, o consumismo é propício, a incompetência política é propícia, a sobrevalorização do dinheiro e do poder é propícia, a falência da nossa ética e dos valores morais é propícia...
Há no horizonte algum Édipo que se aproxima? Quem poderá despertar nossa consciência, nos unir e concretizar uma saída? Alguém que seja estrangeiro ao nosso modo de vida e veja o que não vemos... Alguém que possa querer um mundo novo... Que possa amar aos outros como a si mesmo e a algum deus sobre todas as coisas. Algum jovem, talvez?


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


Próximo Texto: Pergunte aqui
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.