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São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

No lugar para onde segue nosso olhar curioso, imaginamos, escondida, uma realização tão perfeita que tornaria o "fazer" desnecessário

Felicidade

Porque nosso futuro não se delineia com clareza ou porque não enxergamos saídas satisfatórias para o presente ou ainda porque nossa fé e esperança são poucas ou fracas, pressentimos uma falta generalizada de entusiasmo pela vida.
Publicamos, falamos e pensamos numa eterna procura da "felicidade".
Se não temos a felicidade agora, nós a queremos pelo menos para o futuro. Só não sabemos onde procurá-la. Nesse mundo massificado e globalizado, em que tudo é mercadoria, tratamos também esse estado como tal e dela -felicidade- queremos uma boa fatia. Ela é frequentemente vista como direito humano a ser distribuído.
Será que todo mundo pensa a mesma coisa sobre o que vem a ser felicidade? E por que se dá tanta atenção a ela hoje em dia?
Folheando alguns dos inúmeros livros recém-publicados sobre o assunto -por exemplo, "Discurso sobre Felicidade", de Madame du Chatelet, ed. Martins Fontes-, deparei com uma informação que me fez pensar: durante o século 18, teriam sido consagrados ao tema cerca de 50 tratados. Surpreendente para um tempo em que não se publicava tanto quanto hoje. Estaríamos vivendo em épocas irmãs?
Percebo algumas coisas em comum. O século 18 foi o da Revolução Francesa. Finda a monarquia absoluta -se bem que reis e rainhas existam até hoje, mas perdendo o poder cada vez mais-, o homem daquele tempo seria incapaz de prever tudo o que surgira desde então: eleições representativas, república, socialismo e todas as suas transformações e conflitos.
Hoje estamos algo descrentes das conquistas então obtidas. Quem se arrisca, hoje, a prever a organização social, o comportamento e os afetos a serem vividos no século 22? Quando o futuro está confuso, nada melhor do que evocar a existência já vivida da tranquilidade e da harmonia dos momentos de felicidade que temos na memória. Não podemos imaginar, pomo-nos a falar sobre a felicidade. Diante desse futuro nublado, retomamos o mesmo tema ao qual nossos antepassados recorreram. Felicidade é sempre algo um pouco nostálgico. Não enxergando o futuro, evocamos o passado.
A felicidade é um estado de alegria que desejaríamos infinito. É uma saudade, uma nostalgia do "não-fazer", uma vez que, não podendo projetá-la para um futuro nublado, ficamos sem saber o que e como fazer. Felicidade é um momento almejado, que vem sendo cantado nas versões do paraíso de todos os povos. E, no nosso norte, no lugar para onde segue nosso olhar curioso, imaginamos, escondida, uma realização tão perfeita que tornaria o "fazer" desnecessário e a felicidade infinita.
Ao colher a maçã, Eva fez a felicidade paradisíaca evaporar. Gênesis. Parece que lá, no paraíso, o simples desobedecer, comendo a maçã, foi o suficiente para fazer a felicidade evaporar. Quando não sabemos o que fazer, porque o futuro é nebuloso, evocamos o que de bom já sentimos antes -e todos nós fomos felizes algumas vezes.
A vida não pode ser um eterno bem-estar, um permanente "não-fazer", senão morreríamos. Viver é dar e receber, viver é trocar. Isso nem sempre é tranquilo, satisfatório. Conflitos ocorrem nesse processo.
Felicidade é um "stop" no tempo que guardamos na memória. E é essa memória que nos guia para reconhecer quando ela aparece de novo. São momentos fugazes que vivem os torcedores diante do gol da vitória, os atletas quando rompem a fita de chegada. Tornamo-nos um todo orgânico e existencial. É como dar à luz, é como o orgasmo, como certos momentos da amamentação e como certas trocas de olhar. Evocamos esses momentos pelo resto de nossas vidas. É a sensação de que os limites se diluem. A felicidade é sempre fugaz no real e permanente na memória. É o jogo do negativo e da foto. O negativo pode ser revelado mil vezes, mas nem por isso ele se perde. É uma dinâmica sutil e veloz de reorganizar memórias, significados, fazendo a sensação de totalidade se repetir.
É preciso suspender a curiosidade, porque a estrutura do momento feliz é frágil demais para suportar inquietação.
Será possível viver sempre feliz? Eis um paradoxo. Gostaríamos de reter a imobilidade anestesiada do gozo de sentir-se um todo enquanto sabemos ser isso incompatível com a vida que desejamos preservar. Felicidade é, pois, apenas um ingrediente da vida. O mais esperado.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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