São Paulo, quinta-feira, 22 de junho de 2000
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foco nele

Nadador de 90 mergulha na vida

CIÇA GUEDES
FREE-LANCER PARA A FOLHA

Conhecer o atleta Gastão Mariz é uma experiência da qual se sai acreditando na vida. Talvez seja lábia de comerciante, profissão que ele exerceu até a aposentadoria, há mais de três décadas. Talvez seja cacoete de quem conviveu com uma certa fama a vida toda, pois coleciona títulos conquistados em diferentes modalidades esportivas. Mas, com certeza, é a alegria de viver que faz deste homem de 90 anos um ser humano tão fascinante.
Gastão, um nadador especialista em longa distância, bateu seis recordes mundiais master desde março último, como parte do treinamento para o campeonato mundial da categoria, que será em Munique, Alemanha, entre julho e agosto.
Gastão tornou-se um especialista em vencer adversidades desde muito jovem.
Aos 4 anos de idade, perdeu o movimento das pernas. Diagnóstico? Ele nunca soube, sabe apenas que foi salvo pela competência de um profissional de sua cidade natal, Niterói, o médico Antonio Pedro -nome do hospital universitário da Universidade Federal Fluminense, não por acaso- e pela fisioterapia na praia. Daí nasceu uma paixão pelo mar que só encontra rival no amor pela mulher, dona Rita.
Muitos anos depois, foram quatro infartos e uma cirurgia para colocar a ponte de safena. Como se recuperou? Mais uma vez, praticando esportes.
Leia a entrevista com ele abaixo.

Folha - A primeira pergunta é inevitável: qual a sua receita de saúde para chegar aos 90 anos tão bem?
Gastão
- Eu gosto de viver e gosto muito, procuro valorizar as qualidades e relevar os defeitos das pessoas e das coisas. E sempre me cuidei. Tenho três médicos me acompanhando: uma clínica-geral, um cardiologista e um especialista em nutrição. Evito carne vermelha e doces, como muitas frutas, verduras e legumes e jamais forço minha natureza. Por exemplo, evito o estilo borboleta na natação porque exige muito do meu corpo. E acredito na medicina preventiva, uso produtos naturais. O cardiologista disse que isso foi fundamental para me recuperar depois da cirurgia de colocação da ponte de safena.

Folha - Ponte de safena? Quando foi?
Gastão
- Há 12 anos. Sofri quatro infartos e precisei da cirurgia.

Folha - Como você lidou com isso?
Gastão
- Doença faz parte da vida. Se você tem um bom condicionamento físico e se cuida, supera com a força do pensamento. Algum tempo depois da cirurgia, eu me inscrevi num campeonato de natação. Quando estava me preparando para mergulhar, bateu um medo enorme: e se eu errar o ângulo e o corte abrir? E se eu me sentir mal? Afastei os pensamentos ruins, caí n'água e nadei devagar, sem a preocupação de conquistar um lugar no pódio. Eu só queria vencer o medo, impedir que ele me dominasse. Eu gosto de usar uma imagem que é meio feia, mas funciona: nosso cérebro é como uma massa de moldar, tudo deixa uma marca. Se você pensa só em coisas ruins, essa marca vai ganhar mais força no seu pensamento.

Folha - Como surgiu essa paixão pela natação?
Gastão
- Eu me apaixonei primeiro pela água do mar. Fazendo exercícios na praia de Icaraí, em Niterói, me curei de uma paralisia quando tinha 4 anos. Foram a água do mar e a dedicação de um médico chamado Antonio Pedro -que fazia uns sucos misturando várias frutas, como pitanga, caju, manga e me obrigava a tomar- que me fizeram andar novamente. Eu tenho lembrança de como detestava esses sucos! Bem, mas eu sempre pratiquei esportes na água, virou um hábito. Fui campeão carioca de natação e de pólo aquático, de remo, até de basquete, que não tem nada a ver com água! Mas naquele tempo havia poucos atletas, e a briga não era tão feia quanto hoje. Depois de me aposentar, comecei a praticar natação de longa distância, e há três anos fiz a travessia Rio de Janeiro-Paquetá, são 30 km na Baía de Guanabara. Agora meu objetivo é conquistar muitas medalhas de ouro no Campeonato Mundial de Master, na Alemanha. Já bati seis recordes mundiais em costa e crawl desde que comecei a me preparar para competições de velocidade, em março: 50 metros livres, 100 metros livres e 200 metros livres.

Folha - Como é o seu treinamento?
Gastão
- Acordo às 4h45, forro a barriga e vou caminhar num trecho da Floresta da Tijuca conhecido como Paineiras. Volto para casa, forro de novo a barriga, que ninguém é de ferro, e vou para o clube nadar. Volto para casa, almoço e durmo um pouco. Claro que como alguma coisinha antes de sair para o treino da tarde! Para dormir, basta parar cinco minutos na frente da TV...

Folha - O que você acha da desculpa que todo mundo dá hoje em dia de não ter tempo para fazer exercício?
Gastão
- A maioria das pessoas tem uma característica curiosa: cuida de todo mundo e não cuida de si mesmo. Tudo na vida precisa ser encaixado numa rotina, isso vale também, e muito, para a atividade física. Eu segui uma regra durante toda a vida: 40 minutos por dia são só meus. Eu trabalhava à beça na minha loja, tinha os três filhos, mas acordava cedo, corria para a praia e fazia meus exercícios. E muitas vezes eu pensei "Ah, hoje não vou, quero dormir", mas logo espantava a preguiça e não quebrava a rotina.

Folha - Você é o bom humor em pessoa, mas deve ter alguma coisa que tira você do sério. O que é?
Gastão
- Ah, já falei isso, e ninguém jamais publicou. É injusto Pelé ter recebido o título de atleta do século. Ele precisava de mais dez para atuar. Acho que o atleta do século é o Jesse Owens, um negro que acabou com as pretensões de Hitler na olimpíada em que o ditador queria provar a superioridade ariana. Acho que o Pelé é o atleta da mídia do século...



QUEM É ELE
Nome: Gastão Mariz de Figueiredo
Idade: 90
Profissão: comerciante aposentado e atleta
O que faz: participa de competições de natação de longa distância desde que se aposentou e se prepara para o Campeonato Mundial Master, na Alemanha
Filosofia de vida: "Gosto de viver e, como gosto de verdade, procuro valorizar as qualidades e relevar os defeitos das pessoas e das coisas"




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