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Outras idéias
Dulce Critelli
"Não matarás"
Experimentamos profunda perplexidade
diante de crimes hediondos, como no caso do envolvimento de Suzane
Richthofen no assassinato dos
pais. Curiosidade, assombro e
repúdio são sentimentos que se
misturam, sobretudo quando
tais atos são praticados aparentemente sem motivo ou quando seus motivos nos parecem
torpes.
Acreditamos que os homens
são capazes de qualquer coisa
quando se trata de salvaguardar a vida. E, às vezes, chegamos a admitir que tanto a sobrevivência quanto a necessidade justificam atos execráveis
e abjetos. Só por meio desses
motivos tamanha brutalidade
ganharia, ao menos, alguma explicação plausível.
Suzane, no entanto, não agiu
em nome da miséria, da fome,
ou para se defender de maus-tratos. À primeira vista, e sem o
peso de justificativas socialmente convincentes, seu gesto
parece ser pura maldade. Mas
não é sob o estigma da maldade
que entendemos sua ação, ela é
mais do que isso.
O crime de que Suzane participou fere dois dos princípios
fundamentais da nossa ética:
"não matarás" e "honrarás pai e
mãe". Esses dois mandamentos, muito antes de aparecerem
gravados nas tábuas dadas a
Moisés, encontram-se inscritos no coração da condição humana. Valem para todos os homens, para todas as culturas e
para todas as civilizações.
Distinguimo-nos dos animais porque podemos resolver
os problemas e as dificuldades
com nossos semelhantes sem
lhes tirar a vida. Aliás, inventamos diferentes procedimentos,
exatamente para não matar.
Assim, cada vez que uma pessoa resolve suas questões com
um assassinato, ela elimina essa diferença primordial entre
os humanos e os animais.
Os gestos humanos são sempre singulares e revelam ações
possíveis para toda a humanidade. Por isso, sempre que alguém pratica o mal, abre para
ele as portas do nosso mundo e
o convida a entrar. Nenhum ser
humano suporta viver numa
sociedade que acolhe e permite
o mal. Mandamentos, leis, normas e delimitação de direitos e
de deveres têm por finalidade
sua contenção.
Punir um crime é cercear o
mal e, também, uma tentativa
de impedir que ele se prolifere e
se torne lícito. É dar uma chance a quem o cometeu, mas, também, é uma iniciativa de reajustar a caminhada e a convivência
futura dos homens.
É dom humano poder superar suas maldades e suas mazelas e reiniciar uma trajetória
pessoal. Há, portanto, com a
vontade de punição de um crime, uma esperança no coração
dos homens. Por essa esperança, punir é quase perdoar.
DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
@ - dulcecritelli@existentia.com.br
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