São Paulo, quinta-feira, 22 de novembro de 2007
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FAMÍLIA

Sem descendentes

Preocupações com as mudanças na vida a dois e com a carreira levam cada vez mais casais à decisão de não engravidar

FLÁVIA MANTOVANI
DA REPORTAGEM LOCAL

F ilha única, sem tios ou primos e com pais e avós já falecidos, Taís Tanira Rodrigues é a última remanescente de seu ramo familiar. E, se depender dela, a carga genética da família vai parar por aí: aos 42 anos, a produtora cultural não tem filhos nem quer tê-los. "Sempre foi assim. Na adolescência, enquanto minhas amigas sonhavam com filhos, eu não fazia esse tipo de plano", afirma.
Casada há 23 anos com o escritor e roteirista Edison Rodrigues Filho, 47, Taís jura que gosta de crianças, mas diz não querer tê-las "em tempo integral". "O cotidiano com os pequenos é cheio de limitações. Já moramos em Porto Alegre, em Florianópolis, no Rio, em São Paulo... Essa liberdade de ir e vir nos agrada demais. E o universo maternal sempre me pareceu muito restrito. As mães passam a viver a vida dos filhos", acredita. "Sou companheiro fiel da minha mulher nessa opção. Somos felizes assim. Por que arriscar outra fórmula?", completa o marido.
Taís e Edison são um exemplo de um tipo de casal que se torna cada vez mais comum: aquele que, mesmo sem ter detectado nenhum problema para engravidar, opta por não procriar. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que, de 1996 para 2006, a porcentagem de casais sem filhos em relação ao total dos arranjos familiares cresceu de 13,1% para 15,6%. No mesmo período, o percentual de casais com filhos caiu de 57,4% para 49,4%. Uma pesquisa do Datafolha divulgada no mês passado, na qual foram ouvidas 2.093 pessoas, também sugere a tendência: 14% dos entrevistados que se declararam casados afirmaram não ter filhos -em 1998, 10% haviam declarado o mesmo para o instituto.
Embora os dados não permitam separar os casais que não podem ter filhos daqueles que não querem, os especialistas garantem que esse último grupo é uma tendência em vários países. "Certamente, não ter filhos está em alta, apesar dos avanços nos tratamentos para infertilidade. À medida que entram para a força de trabalho, curtem o que fazem, esperam mais para se casar e vêem a luta das colegas para educar os filhos, mais e mais mulheres vêm optando por não tê-los", disse à Folha a americana Madelyn Cain-Inglese, que escreveu o livro "The Childless Revolution: What it Means To Be Childless Today" (a revolução dos sem filhos: o que significa não ter filhos hoje).
A psicóloga brasileira Luci Helena Baraldo Mansur, autora de "Sem Filhos: a Mulher Singular no Plural" (ed. Casa do Psicólogo), confirma que a tendência existe, tendo atingido mais força nos países desenvolvidos. "Inclusive, na língua inglesa, o termo 'childfree' [livre de filhos] vem sendo utilizado para desestigmatizar a opção por uma vida sem filhos, já que a expressão 'childless' [sem filhos] teria mais a conotação de ausência ou falta involuntária", informa.

Livros e clubes
Nos Estados Unidos e na Europa, onde a porcentagem de pessoas sem filhos pode chegar a 30% da população feminina (dado referente à Alemanha em 2005), os lançamentos do mercado editorial refletem o interesse pelo tema: a cada ano, é possível encontrar novos livros dedicados a casais sem filhos. Entre os mais recentes, estão o americano "Pride and Joy: The Lives and Passions of Women Without Children" (orgulho e alegria: as vidas e paixões de mulheres sem filhos), de abril deste ano, e o francês "No Kid: Quarante Raisons de Ne Pas Avoir d'Enfant" (40 razões para não ter filhos), publicado no último mês de maio.
Em países como EUA, Inglaterra e Canadá, já há organizações que oferecem apoio e informação para as pessoas sem filhos. Uma delas, o clube social sem fins lucrativos canadense No Kidding, tem filiais espalhadas pelo mundo que promovem atividades sociais como festas e caminhadas para casais e solteiros sem crianças.
No Brasil, onde não há esse grau de organização em relação ao assunto, o máximo que os entrevistados citaram foi a possibilidade de ir a hotéis e pousadas que não aceitam crianças. "Gostamos de saber que uma pousada não recebe crianças. Não porque a gente não goste delas. Não gostamos é dos pais, que não dão limites e não controlam os filhos", diz a gerente de marketing Fernanda Nolli Gonzalez, 36. Sem filhos por convicção, ela e o marido, o analista de informática Cléber Camacho Gonzalez, 37, são adeptos de esportes radicais e viajam com freqüência. "Vamos muito a parques nacionais e a locais sem condições de receber uma criança pequena", conta Cléber.
Fernanda diz que não se sente preparada para ser mãe. "Gostamos de crianças, mas concordamos que um filho ia atrapalhar nosso modo de vida. Temos uma vida muito desregrada, trabalhamos muito e adoramos viajar e sair", diz. Egoísmo? "Às vezes a gente fala que é muito egoísta. A gente assume isso", afirma ela.
Cléber diz que tem procurado sair com amigos que estão na mesma situação que eles. "Às vezes, saímos com casais com filhos e não dá para conversar com os pais, que estão dando atenção o tempo todo para as crianças." Para o casal, já basta ter que cuidar dos oito bonsais que cultivam. "Dão bastante trabalho. Complica para viajar porque tem que regar todo dia. Já até tentei me desfazer deles...", diz Cléber. "... Mas eu não deixei!", rebate Fernanda. "Tem que ter pelo menos alguma vida em casa", afirma.
"Vida" é o que não falta no cotidiano da advogada Josy Magnani, 33, e do arquiteto Maurício Rebouças, 46. Além de criarem três cachorros em casa, têm mais um no sítio e outro no escritório de Maurício. "Eles são supercompanheiros e dão menos trabalho do que criança", brinca ele.
Assim como Cléber e Fernanda, o casal diz que se acostumou a um tipo de vida na qual "não cabe criança". "Viajamos quase todo fim de semana. Às vezes, decidimos em cima da hora, pegamos a roupa e vamos", conta Josy. Maurício diz que até a arquitetura da casa de campo que eles possuem teria que mudar se tivessem filhos. "Fica num lugar muito inclinado, tem muitas escadas, é mais despojada. Com criança tem que sair protegendo tudo."
Para Josy, a dificuldade de criar filhos nos dias de hoje pesa na decisão. "Nunca quis ter filhos e, ultimamente, quero menos ainda. As crianças são tão mal educadas que não dá. Elas podem tudo, não têm limites. Os pais ficam muito fora de casa e, quando chegam, não conseguem dizer não."

Motivações
Segundo a terapeuta familiar Magdalena Ramos, do Núcleo de Casal e Família da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), a dificuldade de educar crianças na atualidade é um dos motivos que levam muitas mulheres a questionarem a vontade de engravidar. "Cada vez mais as pessoas têm consciência do esforço que significa criar um filho, da dedicação e dos custos econômicos e emocionais envolvidos", diz.
Entre outras razões comuns para que muitos casais abdiquem da paternidade, Luci Mansur cita o desejo de se dedicar mais à relação conjugal, dúvidas sobre a capacidade de ser pai ou mãe, vontade de ter menor preocupação com questões financeiras e inquietações em relação à superpopulação e ao futuro do planeta. Também há muitas mulheres que não chegam a tomar uma decisão consciente sobre o tema: adiam a maternidade para se dedicar à carreira, por exemplo, até que chega uma hora em que fica mais difícil engravidar e desistem.
Foi o que aconteceu com a dentista Regina Luizon, 50, e o oficial de justiça José Reinaldo Gomes, 58, casados há 23 anos. "No início, pensamos em ter. Mas a gente trabalhava, não tinha alguém da família para ajudar por perto e fomos adiando. Até que concluímos que estava bom assim", diz Regina. Eles adoram viajar pelo Brasil e para outros países e, curiosamente, já foram várias vezes à Disney. "Tem gente que acha que só vai para lá quem tem filho, mas nós curtimos bastante, já estamos até querendo ir de novo", diz José Reinaldo.
Regina conta que os dois vão sempre às festas de aniversário dos sobrinhos e que adoram desenhos animados. "Vamos ao cinema ver Shrek... O pessoal procura: 'Cadê os filhos?'. Mas a gente nunca ligou", diz ela, que é odontopediatra e acredita que realizou seu "lado maternal" na profissão. "Como tenho bastante paciente e me dou bem com a criançada, as pessoas levam susto quando vêem que não tenho filho. Mas realmente não senti necessidade", afirma.
Para Magdalena Ramos, apesar de haver cobrança em relação aos casais sem filhos, hoje há mais liberdade de escolha. "Nas gerações passadas, o filho fazia parte do 'pacote' do casamento. Se o casal não tinha, a primeira coisa que pensavam era que um dos dois tinha algum problema. Hoje, a cobrança não é tão marcante, apesar de a situação ainda gerar desconforto."
Segundo Luci Mansur, as pesquisas mostram que casais sem filhos ainda sofrem muito preconceito e pressão. "Em pleno século 21, ouvimos comentários estigmatizantes como 'mulher sem filhos é como uma árvore seca, que não deu frutos'."
Muitos casais entrevistados pela Folha disseram que ouvem rotineiramente expressões como "aposto que vocês vão mudar de idéia", "não têm medo de se arrepender?" ou "mas quem vai cuidar de vocês na velhice?".
"Não é uma situação normal aos olhos das outras pessoas. Você vive dando explicações e é visto, muitas vezes, como egoísta", diz Taís Rodrigues. Ela lembra que leu uma entrevista com o fundador do clube No Kidding, Jerry Steinberg, na qual ele retruca dizendo que muita gente tem filhos por motivos egoístas. "Por um lado, não engravidar é uma decisão egoísta, de querer ter liberdade, viver com menos turbulência. Mas muitas pessoas têm filhos por motivos egoístas também: por vaidade, para viver coisas que não puderam viver, exercer poder, dar continuidade ao nome da família", diz.
Sobre isso, aliás, ela garante que o fato de ser a última de seu ramo familiar não a fez pensar de novo na sua opção. "Isso não muda nada", afirma.


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