São Paulo, quinta-feira, 23 de abril de 2009
Próximo Texto | Índice

OUTRAS IDEIAS

Anna Veronica Mautner

Do livro ao e-book


[...] O CONTEÚDO DO LIVRO PERDE IMPORTÂNCIA EM CERTOS CASOS, FICANDO A DEDICATÓRIA, A IDADE, A RARIDADE COMO VALOR PRINCIPAL

Quem tem medo de e-book? Eu não. Falarei livremente sobre livros, adiantando que não será um tratado. Para começar, trata-se de um objeto concreto, ao qual vamos agregando vasta simbologia. As folhas são numeradas na sequência sonhada pelo autor. Livro é impresso; se manuscrito, é caderno. A passagem do manuscrito para a página impressa é um fenômeno de vai e vem.
Há pouco tempo, era mal visto entregar carta pessoal datilografada. Manuscrever correspondência burocrática ou comercial soa estranho. Uma carta de amor prefere ser escrita à mão. O manuscrito continua tendo seu lugar de honra no mundo, e a caligrafia também.
Com a imprensa difundindose, deixamos para trás o livro/ objeto único e avançamos para formas mais democráticas. O mundo dos copistas foi substituído pelas edições raras, autografadas ou dedicadas: esses são os livros valiosos. Da acumulação de unidades, criamos coleções particulares e bibliotecas públicas.
Coleções são mais do que amontoados de livros. Não à toa, a biblioteconomia como curso superior veio para ficar. Nele, aprende-se a classificar livros de forma que qualquer um encontre a unidade desejada. Hoje, isso é uma exigência vital. Biblioteca é um órgão vivo que cresce e encolhe segundo uma lógica que obedece à finalidade e ao interesse de quem vai consultá-la. Cada biblioteca de bibliófilo obedece às categorias de sua preferência. O conteúdo do livro perde importância em certos casos, ficando a dedicatória, a idade, a raridade como valor principal. E, assim, a história do livro vai se fazendo, incluindo e-books.
O manuscrito mantém seu lugar, especialmente na fronteira entre o público e o privado. Por exemplo, um testamento, um último pedido antes da morte, é mais facilmente aceito se for manuscrito. Por outro lado, a intermitência com a qual é usado põe de escanteio o exercício da caligrafia, que, de habilidade de todos, passa a artesanato ou quase arte.
Num mundo paradoxal, a indústria editorial cresce e vamos procurando meios de transformar um livro em meu livro, de tornar único o que é massificado pela indústria editorial.
Livro tem forma, conteúdo, pode ser manuseado, catalogado, autografado, dedicado, levado de um lugar para o outro, comercializado, guardado. Seu apelo simbólico é tão especial que não há por que temer o computador ou o e-book.
Lembro uma singeleza que já foi mais importante: guardavam-se dentro do livro folhas que ali ficavam para lembrar o tempo da primeira leitura. O conteúdo do livro conta, informa, divulga, mas cada exemplar carrega a história de seu dono.
Do copista passamos pelo chumbo fundido da linotipia, seguimos para a máquina de escrever, encostamos o velho mimeógrafo, chegamos ao computador e ao seu editor de textos. Caminhamos para o e-book e sei lá mais o quê.
O futuro vem aí, mas os livros continuam cultuados. São parte da história de cada um de nós, o que o e-book jamais será.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br

Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


Próximo Texto: Pergunte aqui
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.