São Paulo, quinta-feira, 23 de maio de 2002
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drible a neura

É preciso dar ouvidos ao problema da audição

ANTONIO ARRUDA
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eles querem que eu fique surdo!" é a frase que a psicóloga Maria Célia de Abreu, especializada no atendimento a pessoas maduras, já ouviu da boca de vários idosos que começam a perder a audição, mas se recusam a aceitar. Eles insistem que estão ouvindo bem e creditam aos outros a responsabilidade sobre sua deficiência. É um comportamento comum e desgastante para todos: para o idoso e para quem convive com ele, que também acaba passando por situações de estresse e de desgaste e tem de se adaptar ao problema, às vezes tanto quanto o portador da deficiência. Quando a pessoa começa a apresentar perda auditiva, primeiro ela tenta modificar o ambiente ao seu redor: pede para os parentes falarem mais alto, aumenta muito o volume da TV, do rádio ou da campainha do telefone. Depois, ela tende a se isolar: passa a dormir mais cedo que o habitual, deixa de ouvir música e evita participar de reuniões de família. "Essa pessoa pode passar a viver no ostracismo e apresentar depressão", diz a otorrinolaringologista Mara Edwirges Rocha Gândara. "Já fiquei deprimido, sim", diz o contador aposentado João Felisberto Charles, 75. "Nós mesmos nos isolamos. Queremos entender o assunto em discussão e não conseguimos, então vamos ficando acanhados, retraídos, agoniados e chateados, e nos afastamos dos demais." Sua esposa, a professora aposentada Adelaide Lebrão Charles, 74, conta que "muitas vezes, nos encontros de família, ele dá um jeito de fugir, escapa de fininho e não raro resiste ao uso do aparelho". Ela diz perder a paciência com o marido em alguns momentos, principalmente quando tem de repetir "dez vezes a mesma frase". "Quando ele fica muito nervoso por não conseguir ouvir a TV, por exemplo, eu fico nervosa junto com ele", completa.

Rejeição à prótese
A perda auditiva de Charles já atinge os dois ouvidos. Apesar disso, ele chega a ficar dois, três dias sem usar a prótese. "Se ponho o aparelho e passa uma moto na rua, fico atordoado com o barulho", desabafa. Superada a dificuldade em aceitar a deficiência, vem outra batalha: o uso da prótese auditiva. Assumir a necessidade do aparelho é reconhecer que se está envelhecendo. "É como se a pessoa usasse uma etiqueta na testa, cintilante, com os dizeres "sou um velho'", comenta a psicóloga. Arnaldo Bilton, 80, aposentado que trabalha como consultor empresarial, possui perda auditiva principalmente no ouvido esquerdo. A filha, Tereza Loffredo Bilton, é fonoaudióloga da Unifesp especializada em gerontologia. Nem por isso ele se sente à vontade para resolver o problema. "Ele é muito vaidoso, é difícil fazê-lo usar a prótese devidamente. Tive de indicar uma médica amiga para cuidar do caso dele", conta Tereza. O pai não nega: "As pessoas reparam muito; qualquer um que tenha um treco desses pendurado na orelha é muito visado". A esposa de Bilton, Elza Loffredo Bilton, 73, diz ter bastante paciência com o marido -"apesar da sua teimosia e da relutância em usar a prótese"- e estar acostumada à sua deficiência, mas confessa assitir TV no quarto "porque na sala, onde o Arnaldo assiste, o volume é muito alto". A deficiência auditiva causada pela idade não acomete apenas quem tem mais de 70 anos. A chamada presbiacusia, que é o envelhecimento natural das células cocleares (que recebem as frequências sonoras e permitem que as pessoas ouçam), pode começar na faixa dos 50 anos de idade. É o caso do dentista Fuad Antacle, 58. Como bom pai coruja, lá estava o dentista -na época, com 48 anos-, torcendo pelo filho que tentava marcar um gol em uma partida de futebol. De repente, um tumulto chama a sua atenção, e ele se pergunta: "O que aconteceu?". Era apenas o apito do juiz, que ele não havia escutado, anunciando o pênalti. Quando esse episódio aconteceu, o dentista começava a perder sua capacidade auditiva. Depois disso, foi uma brincadeira de telefone-sem-fio com os filhos e a esposa que o preocupou. "Eu não conseguia participar, não era capaz de ouvir o cochicho das crianças." As tensões começaram a surgir também em reuniões de trabalho, conferências e até mesmo nos momentos de lazer. A solução? "Colocar uma prótese auditiva", disse o médico. A notícia foi recebida como um choque. "Demorei uns seis meses para digerir isso, em parte por causa da vaidade e também porque meu ego foi afetado: sempre tive uma saúde perfeita, de repente ter de conviver com a perda da audição? Foi terrível", diz Antacle, que só colocou uma prótese em 98 e usou-a até 2000. "Desisti porque não estava satisfeito com o resultado", diz ele. Agora, encontrou um novo especialista para escolher um aparelho mais eficiente e com mais recursos.

Culpa do piano
Ultrapassadas as fronteiras do "não quero, não preciso e não gosto" e da dificuldade de se adaptar com o aparelho, vem a recompensa: redescobrir como é escutar sem dificuldade.
A pianista Maria Lúcia Vieira Machado, 79, que chegou a chamar o "médico" do seu piano, como ela diz, pois achava que não ouvia as notas mais agudas por defeito do instrumento, colocou uma prótese em 98. A primeira coisa que fez foi ir à rua. No meio do caminho, atravessando o jardim de seu prédio, surpreendeu-se com o canto dos pássaros. "Fiquei emocionada. Foi aí que eu vi o quanto a situação estava grave. Eu não sabia que não estava ouvindo mais o canto deles", conta ela.
Já o dentista Antacle vai encarar o aparelho "nem que a médica diga que a prótese vai ser grande e ficar para fora da orelha". Ele diz que quer voltar a ouvir "os grilos que tanto gostava de escutar na chácara". E os filhos, hoje maiores de idade, continuam incentivando o pai, dizendo: "Você está perdendo muita coisa!".
Confira nesta página os argumentos dos especialistas que ajudam a aceitar a prótese auditiva.



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