São Paulo, quinta-feira, 23 de agosto de 2007
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OUTRAS IDÉIAS

O hóspede acidental

Michael Kepp
D esde que o câncer levou minha mãe, quando eu tinha dez anos, sempre me senti um hóspede em minha própria casa. Meu pai tinha de trabalhar noite e dia para pagar pelas operações dela e pela governanta que morava conosco e cuidava de mim e de meus dois irmãos mais novos depois de sua morte. Já que papai chegava quando estávamos dormindo, perder a mamãe foi um pouco como perdê-lo também. De estalo, o vácuo criado pela ausência deles foi preenchido pela presença de alienígenas imponentes que pareciam se materializar do nada -o pior pesadelo de uma criança.
Eu reagia a essas invasivas figuras de autoridade me rebelando. Meus motins incessantes criavam um reino de terror: a governanta mandava oficialmente no reino, e eu entrava com o terror. Isso explica as dez governantas diferentes até eu sair de casa para a faculdade, aos 18 anos. Algumas vinham em par (a governanta e o marido-governador). Algumas vinham com namorados, cuja sedução embriagada no sofá da sala de estar eu interrompia quando voltava da escola. Quando você se sente um intruso na sua própria casa, ela deixa de ser um lar.
Por quase duas décadas após sair de casa, vivi quase sempre sozinho em apartamentos alugados -carcaças de casas. Minha partida dos EUA, minha pátria, para o Brasil só aumentou minha sensação de desterro. E, apesar de o Brasil se tornar lentamente meu lar adotivo, eu tenho sido hóspede aqui. Renovar meu visto de jornalista a cada quatro anos tem trazido novas condições e complicações. Os EUA são o único lugar cujas portas são incondicionalmente abertas para mim. Existe definição melhor para "lar"?
Eu também me sinto hóspede em meu lar adotivo porque, apesar de os brasileiros terem feito com que me sentisse bem-vindo, para eles, sempre vou ser um gringo. Sou forasteiro até em minha própria família. Há 15 anos, fui morar com uma piauiense e seus dois filhos, tornando-me parte da família graças a uma série de conquistas afetivas similares àquelas vividas por filhos adotivos.
Como uma criança adotada, sempre me sinto o membro periférico da minha família. Por anos, meu enteado me chamou de "o jardineiro" e dizia que minha casa era meu escritório, um apartamento próximo. Ele e minha enteada ainda me vêem apenas como marido da mãe, do mesmo modo que eu via as governantas como pessoas que serviam a meu pai, e não a mim. Apesar de, com os anos, eles terem feito com que eu me sentisse em casa, todos sabemos que moro ali condicionalmente, só porque a mãe deles mora.
Quando ambos saírem de casa, eu e a mãe deles vamos sentir muita falta do que hoje a torna um lar -o piano dele tocando, as novidades dela e o fato de só os dois saberem operar o controle remoto. Mas um lar é um arranjo fluido e nada democrático. Pergunte a qualquer pai forçado pelo divórcio a deixá-lo. Em 2005, o furacão Katrina forçou a maioria de suas vítimas a viver com parentes em outras cidades. Mas ser hóspede é bem diferente de se sentir como um. Eu tenho um lar, não importa o quão periférico e precário meu lugar nele possa parecer.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br




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