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OUTRAS IDÉIAS
O hóspede acidental
Michael Kepp
D esde que o câncer levou minha mãe,
quando eu tinha dez
anos, sempre me
senti um hóspede em minha
própria casa. Meu pai tinha de
trabalhar noite e dia para pagar
pelas operações dela e pela governanta que morava conosco e
cuidava de mim e de meus dois
irmãos mais novos depois de
sua morte. Já que papai chegava quando estávamos dormindo, perder a mamãe foi um pouco como perdê-lo também. De
estalo, o vácuo criado pela ausência deles foi preenchido pela presença de alienígenas imponentes que pareciam se materializar do nada -o pior pesadelo de uma criança.
Eu reagia a essas invasivas figuras de autoridade me rebelando. Meus motins incessantes criavam um reino de terror:
a governanta mandava oficialmente no reino, e eu entrava
com o terror. Isso explica as dez
governantas diferentes até eu
sair de casa para a faculdade,
aos 18 anos. Algumas vinham
em par (a governanta e o marido-governador). Algumas vinham com namorados, cuja sedução embriagada no sofá da
sala de estar eu interrompia
quando voltava da escola.
Quando você se sente um intruso na sua própria casa, ela
deixa de ser um lar.
Por quase duas décadas após
sair de casa, vivi quase sempre
sozinho em apartamentos alugados -carcaças de casas. Minha partida dos EUA, minha
pátria, para o Brasil só aumentou minha sensação de desterro. E, apesar de o Brasil se tornar lentamente meu lar adotivo, eu tenho sido hóspede aqui.
Renovar meu visto de jornalista a cada quatro anos tem trazido novas condições e complicações. Os EUA são o único lugar
cujas portas são incondicionalmente abertas para mim. Existe definição melhor para "lar"?
Eu também me sinto hóspede em meu lar adotivo porque,
apesar de os brasileiros terem
feito com que me sentisse bem-vindo, para eles, sempre vou ser
um gringo. Sou forasteiro até
em minha própria família. Há
15 anos, fui morar com uma
piauiense e seus dois filhos, tornando-me parte da família graças a uma série de conquistas
afetivas similares àquelas vividas por filhos adotivos.
Como uma criança adotada,
sempre me sinto o membro periférico da minha família. Por
anos, meu enteado me chamou
de "o jardineiro" e dizia que minha casa era meu escritório, um
apartamento próximo. Ele e
minha enteada ainda me vêem
apenas como marido da mãe,
do mesmo modo que eu via as
governantas como pessoas que
serviam a meu pai, e não a
mim. Apesar de, com os anos,
eles terem feito com que eu me
sentisse em casa, todos sabemos que moro ali condicionalmente, só porque a mãe deles
mora.
Quando ambos saírem de casa, eu e a mãe deles vamos sentir muita falta do que hoje a
torna um lar -o piano dele tocando, as novidades dela e o fato de só os dois saberem operar
o controle remoto. Mas um lar
é um arranjo fluido e nada democrático. Pergunte a qualquer pai forçado pelo divórcio
a deixá-lo. Em 2005, o furacão
Katrina forçou a maioria de
suas vítimas a viver com parentes em outras cidades. Mas
ser hóspede é bem diferente de
se sentir como um. Eu tenho
um lar, não importa o quão periférico e precário meu lugar
nele possa parecer.
MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano
radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões
e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
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