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Círculo vicioso
Dependências e comportamentos compulsivos se disseminam, ganham novas interpretações e melhores opções de tratamento, despertando atenção cada vez maior da sociedade
Sexo, comida, exercício e compras, entre outras atividades tidas como normais e rotineiras,
vêm se transformando na principal causa de preocupação de pessoas que se consideram
"viciadas" em algumas delas.
Para psiquiatras, psicanalistas e antropólogos ouvidos pela Folha, mudanças sociais nas últimas décadas e o próprio avanço da medicina ajudam a explicar o fenômeno. Estaríamos vivendo
uma nova era, na qual o que tradicionalmente se chama de "vício" ganhou maior amplitude, novos diagnósticos e passou a despertar crescente interesse de terapeutas, da indústria farmacêutica, da sociedade e também de governos.
"Vício" é uma palavra em geral evitada pelos especialistas, por sua conotação moral negativa. Eles preferem o termo "dependência", quando se trata de
drogas, e "compulsão", para designar distúrbios como a irrefreada e repetida "vontade" de fazer compras ou de praticar sexo.
O problema não está em querer consumir ou ter
relações sexuais, mas em viver quase exclusivamente
para isso. Nesse caso, um impulso particular sobrepõe-se a todas as demais atividades que a pessoa
possa -ou mesmo queira- fazer. Os tipos compulsivos, segundo o psiquiatra Marcos Ferraz, são caracterizados pela perda da liberdade.
Com os progressos na explicação desse mecanismo, o viciado passou da condição de culpado para a
de vítima, seja do meio social, seja da genética.
Mecanismos iguais
De acordo com Rodrigo
Bressan, professor de pós-graduação em psiquiatria
da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), os
mecanismos cerebrais que determinam a dependência de drogas e as compulsões comportamentais são
muito semelhantes -têm a ver com a perda de possibilidade de escolha. Em ambos os casos, a pessoa
não pode mais ficar sem determinada substância
-seja ela o cigarro, o álcool ou uma droga ilícita-
ou sem repetir uma ação ou um comportamento.
O número de viciados, seja em drogas, seja em
comportamentos, vem se acelerando desde o fim
dos anos 70. Para o psiquiatra e psicanalista Joel Birman, professor titular do Instituto de Psicologia da
UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), esse
aumento é uma conseqüência das novas exigências
da sociedade dita pós-moderna.
Segundo o psicanalista, essa sociedade exige cada
vez mais das pessoas em todas as áreas, mas elas nem
sempre estão preparadas para responder a tal demanda. Uma profusão de estímulos, geralmente na
forma de imagens (TV, mídia, publicidade), bombardeia os indivíduos, que muitas vezes têm dificuldades de elaborá-los. "Sentimo-nos possuídos por
uma excitação da qual não conseguimos dar conta",
diz Birman. O resultado desse processo é o que o psicanalista chama de "excesso de excitabilidade".
A sociedade também impõe uma competição acirrada entre personalidades exibicionistas e autocentradas. Cada indivíduo precisa buscar sempre o máximo desempenho. Quem não consegue lidar com o
excesso de excitabilidade nem se adaptar a essa "cultura do narcisismo" pode sucumbir, diz Birman.
Diante de tal ameaça, ocorrem reações: o excesso
de excitabilidade se converte em perturbações psicossomáticas, síndrome do pânico ou depressão. Para fugir de situações como essa ou lidar com elas, a
pessoa começa a comer muito, jogar ou se drogar.
A compulsão por drogas possui uma característica
peculiar. Algumas delas alteram a personalidade de
tal forma que permitem melhorar o desempenho social de forma momentânea. O sujeito inadaptado,
que normalmente não teria chance numa sociedade
que exige performance, pode encontrar na droga um
meio, à primeira vista, viável de integração.
O desejo
O psicanalista Contardo Calligaris, no
entanto, faz uma ponderação no que se refere ao tratamento e à atenção dada hoje aos chamados "vícios
modernos", as compulsões. Ele preocupa-se com o
fato de que cada vez mais comportamentos venham
sendo tratados como vícios. "Seguindo essa lógica,
qualquer comportamento que a gente goste e repita
assiduamente, apesar de riscos e contra-indicações,
seria uma toxicodependência."
Calligaris considera que a utilização do modelo explicativo da dependência de drogas para descrever
outros comportamentos pode ser apenas uma desculpa para evitar um fato incômodo: às vezes as pessoas desejam coisas de que se envergonham, que as
prejudicam, que as perturbam.
Em vez de assumirem que desejam algo considerado "errado", podem atribuir esse desejo a desequilíbrios químicos que alguma pílula supostamente poderia curar. "Há uma diferença radical entre uma toxicomania e essas condutas", diz Calligaris.
Tudo a mesma droga?
Ao falar de "droga",
especialistas não se referem apenas às substâncias
ilegais, mas também às legais, como o álcool e até
mesmo remédios psiquiátricos, conhecidos como
psicofármacos. De acordo com Birman, muitas vezes
não existe diferença entre quem usa antidepressivo,
ansiolítico ou cocaína: todos eles querem melhorar
seu desempenho diante das exigências da sociedade
pós-moderna.
O psiquiatra e psicanalista Durval Mazzei Nogueira
Filho, especialista no tratamento de dependentes de
drogas e autor do livro "Toxicomania", concorda e
aponta um novo problema: o aumento do consumo
de remédios psiquiátricos.
Isso significa que um número cada vez maior de
pessoas deprimidas está recebendo tratamento e deixando de sofrer, mas, segundo Mazzei, é preciso lembrar que a diferença entre os remédios e as drogas ilícitas é bem menor do que muitos supõem.
Em geral, os medicamentos não instauram uma
suposta normalidade na química cerebral, mas
criam um estado psíquico novo. "Esses remédios
agem na mesma região cerebral que recebe o impacto das drogas, o sistema de gratificação e recompensa. Mas o medicamento não atua nos mecanismos
íntimos da doença, mesmo porque ninguém sabe
quais são eles", afirma.
Mazzei não deixa de receitar remédios quando
considera necessário, mas se irrita com o fato de esses remédios serem periodicamente anunciados pela mídia como solução para todos os males.
Para Jair Mari, professor de psiquiatria da Unifesp, que atende dependentes químicos, a depressão muitas vezes leva algumas pessoas a buscar as
drogas. "Para esses casos, o auxílio de remédios e a
psicoterapia podem solucionar o problema", diz.
Antidepressivos podem, ainda, funcionar como um
substituto para algumas drogas, como a cocaína.
No entanto o uso de remédios não é unanimidade
entre os médicos. O psiquiatra Ronaldo Laranjeira,
diretor da Uniad (Unidade de Pesquisas em Álcool
e Drogas), da Unifesp, afirma que, "se esse uso fosse
simples, o problema da dependência de drogas já
estaria resolvido".
Os caminhos da cura
Não há um caminho
único para quem quer se livrar da dependência ou
compulsão. A ajuda vinda dos grupos de anônimos,
de psicoterapeutas e até dos bancos das igrejas, ao
lado dos remédios recomendados por psiquiatras,
podem ajudar uma pessoa a se recuperar do vício.
Formado em 1935 nos Estados Unidos, os Alcoólicos Anônimos, segundo a própria entidade, têm
cerca de 2 milhões de membros no mundo. Só na cidade de São Paulo, existem mais de 200 grupos de
ajuda -além dos alcoólicos, há grupos para narcóticos, comedores compulsivos e dependentes de sexo, entre outros.
Em suas reuniões periódicas, as pessoas trocam
experiências e encontram apoio de outras com os
mesmos problemas. "O grupo funciona como uma
segunda família", diz o sociólogo Leonardo Mota,
autor de um livro sobre os Alcóolicos Anônimos.
As técnicas dos anônimos, no entanto, são alvo de
críticas. O psicanalista e psiquiatra Maurício Gadben, que defendeu tese de doutorado sobre dependentes na Unicamp, critica os anônimos por só atacarem os sintomas da dependência. O psiquiatra
Jairo Werner, coordenador do grupo de estudos sobre tratamento de alcoolismo da Universidade Federal Fluminense, diz que falta aos grupos diagnóstico médico. "Muitos dos que os procuram precisariam de auxílio especializado", afirma.
Ainda assim, profissionais de saúde não questionam a validade dos anônimos. Ao contrário, recomendam aos seus pacientes que os freqüentem. O
psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, presidente do
Grea (Grupo de Estudos de Álcool e Drogas, da
USP), é um deles. A psicóloga Maria Paula Oliveira,
uma das fundadoras do Ambulatório do Jogo Patológico do Proad, da Unifesp, concorda. Ela diz que os
anônimos tiram dos dependentes o sentimento de
onipotência. Nos grupos, eles precisam admitir que
são incapazes de controlar seus impulsos e que um
"poder superior" os orienta.
Religião pode viciar
Outro caminho para
livrar-se da dependência é a religião. Muitas delas
oferecem tratamentos para diversos tipos de vício. A
Igreja Católica, por exemplo, criou, em 1998, a Pastoral da Sobriedade. A entidade segue o modelo dos 12
passos dos anônimos.
O professor de sociologia da USP Flávio Pierucci
afirma que as religiões usam o tratamento para conquistar fiéis. Dom Irineu Danelon, coordenador da
Pastoral da Sobriedade em São Paulo, admite a catequese na pastoral e é taxativo: "Não há recuperação
sem evangelização".
Participante das reuniões da pastoral desde a fundação, Valmir, ex-dependente de cocaína, diz que só
conseguiu abandonar as drogas com a religião. "Freqüentei reuniões do Narcóticos Anônimos, mas vi
que ficaria dependente delas. Só com Deus consegui
ser independente."
Algumas pessoas trocam uma compulsão por outra, tornando-se fanáticas por religião, segundo o
psiquiatra Edmundo Maia.
Dom Irineu Danelon admite que algumas pessoas
exageram. "As pessoas devem agradar a Deus pelo
estilo de vida que levam, e não apenas pela palavra."
A dependência no divã
Enquanto nos anônimos e nas igrejas os dependentes contam experiências sem ser questionados, nos tratamentos psicoterápicos eles falam de assuntos que nem sempre
abordariam sem estímulo. "Nas terapias de grupo,
todo mundo conversa, se questiona. O terapeuta
sempre aponta questões", afirma a psicóloga Maria
Paula Oliveira.
Há duas diferentes abordagens para o tratamento
psicoterápico, segundo a ONU: a behaviorista e a
psicodinâmica.
Na primeira, o terapeuta acredita que o comportamento compulsivo decorre de falha no aprendizado.
O paciente precisa aprender a se comportar de outra
forma. Werner, da UFF, compara o aprendizado ao
de línguas. "O dependente precisa aprender outra
linguagem que não a das drogas."
A psicodinâmica aborda a questão do vício como
reflexo de conflitos internos surgidos na infância e
que precisam de solução. Eliseu Labigalini, psiquiatra do Proad, afirma que a terapia é longa e, às vezes,
difícil, por obrigar o paciente a se questionar.
Internações
Quando o dependente já tentou
parar de várias formas e não conseguiu, a saída pode
ser a internação, afirma José Galduróz, psiquiatra do
Cebrid, da Unifesp.
Ela, no entanto, não significa o fundo do poço. Segundo José Antônio Zago, psicólogo do Instituto
Bairral (clínica psiquiátrica que atende dependentes), boa parte dos internos tem emprego e apoio da
família. O jornalista Carlos, por exemplo, ainda trabalhava quando foi internado pela primeira vez, em
2001. Só em 2004, por causa de uma recaída, perdeu
o emprego.
As clínicas combinam, em geral, o uso de remédios
com psicoterapia e terapia ocupacional. Algumas
usam também os 12 passos dos anônimos e o auxílio
da religião.
De todos os tratamentos, dizem os especialistas
ouvidos, o melhor é aquele ao qual o dependente se
adapta, que pode ser a simples vontade de parar ou
todos juntos.
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