São Paulo, quinta-feira, 23 de outubro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Anna Veronica Mautner

O lado alegre da crise global


[...] FALA-SE QUE A PÍLULA FOI A GRANDE LIBERTADORA DA MULHER, MAS, EM VERDADE, AFIRMO-VOS: FORAM OS ABSORVENTES

O sistema financeiro perdeu o rumo... E todos nos sentimos ameaçados de empobrecer o consumo pessoal.
Imensas nuvens negras parecem que vão nos obrigar a dispensar supérfluos. Mas o que é supérfluo, uma vez que fazer economia em miudezas virou mesquinharia?
Resolvi fazer uma lista de tais coisas sem as quais já não concebemos nosso dia-a-dia. Vemos como grande seara de liberdade poder escolher entre as inúmeras marcas de produtos para higiene da casa, das roupas e do próprio corpo. Como nos sentiríamos se desaparecessem dezenas de marcas e ficassem apenas o Leite de Colônia, o talco, a Minâncora e o Leite de Aveia Davene?
Antes da industrialização maciça, sem nenhum saudosismo, o sol era um grande desinfetante. Servia para quarar, desinfetar, branquear e secar.
Agora me ocorre que, além de ajudar no orçamento, é visto hoje em dia como ecologicamente correto.
Panelas eram lavadas com areia, mais tarde substituída por Sapólio. Em dia de faxina, a casa recendia a creolina e a cera em pasta espalhada com um trapo velho no chão. Por enquanto, tudo ecologicamente correto, apesar de não saber bem o que é creolina. Nenhum invólucro levaria cem anos para ser biodegradado.
Limpar era com sabão em barra, escova e muque. Desinfetar era com amoníaco, creolina e, mais tarde, com derivados de cloro -mas isso já são modernidades. Os cabelos podiam ser cuidados criando muito pouco lixo. Para encrespar, cachinho com ou sem "bigoudi" ou permanente. Para alisar, a velha touca que mulheres de todas as classes sociais sabia fazer e esconder sob turbantes.
O banho-maria era um recurso para derreter tocos de batom e lascas de sabonete, e em poucos minutos tínhamos batom e sabonete novos. Mancha de pele se escondia com pó-de-arroz; perfume de banho recém-tomado se destacava com talco. O enxoval de uma donzela era feito em casa com muito orgulho.
A menstruação era um problema à parte. Pudor misturado com um tipo muito especial de vergonha. Usavam-se toalhinhas que eram presas a um tipo de cinta elástica -tinham que ser lavadas, secadas, passadas e guardadas, tudo na moita. Já o absorvente custa dinheiro. Fala-se que a pílula foi a grande libertadora da mulher, mas, em verdade, afirmo-vos: foram os absorventes.
Poderia prolongar mais um pouco essa lista de economias em caso de necessidade de apertar o cinto. No livro "Sebastiana Quebra-galho", de Nenzinha Machado Salles (ed. Record, R$ 42, 392 págs.), há infinitas dicas para, como diz o título, quebrar galhos. O que eu só vim a perceber enquanto pensava nessas mal traçadas linhas é que economizar é ecologicamente supercorreto. O mais importante acaba sendo a diminuição drástica de embalagens nada biodegradáveis.
Ninguém pode decretar essa nova forma de viver, mas que é um brinde aos ambientalistas, isso é. Já pensou quanto dinheiro seria poupado?


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Dulce Critelli


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