São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Considerações sobre o bem-fazer

Existem algumas frases que passam de pai para filho, e a gente vai repetindo sem prestar atenção. Diz-se, por exemplo, que a maior herança que podemos deixar para nossos filhos é a educação.
Assim como esse dito, encontramos muitos outros que também vamos engolindo sem mastigar. Já estava eu com a idéia de escrever sobre isso, quando vi uma resenha da obra de um americano, Steven Levitt, que manda desconfiar do que ele chama de sabedoria convencional. Como este meu escrito não é uma tese com exigência de originalidade, peço licença para continuar com as minhas idéias, que coincidem com as de Levitt.


Hoje não basta conhecer. Há um verbo que está em falta e que deveria fazer parte de qualquer formação: fazer


Desconfio da assertiva inicial. Vejo, cada vez em maior número, pessoas que não souberam fazer bom uso da herança que lhes foi outorgada. Está aumentando, pelo menos nas grandes cidades, o número de pessoas que, apesar de terem tido educação formal de qualidade e família razoavelmente estruturada, não souberam aproveitar a infra-estrutura que receberam.
Ao conceito de "educação" aglutinam-se títulos, diplomas e prêmios, que outorgam status. Hoje não basta conhecer. Há um verbo que está em falta, pelo menos na quantidade necessária, e que deveria fazer parte de qualquer processo de formação: fazer. E não basta fazer igual. É indispensável saber por que se faz assim.
Há poucos dias, eu me vi às voltas com a vontade de ensinar um adulto, diplomado e laureado, a cozinhar legumes no vapor. Depois de lhe falar da existência de panelas apropriadas e da adaptação possível de uma peneira e tendo dito também que se poderia colocar nos legumes vários temperos, e isso tudo envolvido em papel-alumínio, achei que tinha ensinado. Imaginei que ele saberia que a função do papel-alumínio não era apenas manter o tempero e que o legume tinha de ser embrulhado para manter o gosto. A mim, parecia óbvio que, se for para colocar o legume desembrulhado no vapor, poderíamos colocá-lo dentro da água diretamente. Pois não é que ao laureado doutor não ocorreu que os nutrientes cairiam na água, iriam ralo abaixo e que, na peneira, só restariam fibras insossas? Dias depois, quando ele me contou que tinha posto os legumes na peneira bem em cima do bafo, deixando gosto e nutrientes escorrerem na água, tive vontade de designá-lo de pouco inteligente. Não podia fazer isso, pois ele é doutor. Será que é? Vai ver é um bom repetidor! No caso dos legumes, faltaram pensamento, questionamento e a dose exata de desconfiança. Ele não questionou se eu teria mandado colocar papel-alumínio só para complicar.
De qualquer forma, no segundo encontro percebi que eu tinha errado ao imaginar que ele usaria a razão para uma coisa tão prosaica. Ouviu o que eu disse, simplificou e fez bobagem. Com certeza, ele não aprendeu a fazer, apenas vai fazendo sem prazer as tarefas do dia-a-dia e nunca será um grande cozinheiro. Na vida, cheia de ações prosaicas, banais, porém tão importantes para a sobrevivência, tropeçará muito e dependerá sempre de um sem-número de fazedores, aos quais não saberá comunicar de que jeito gosta de suas coisas. Quem não domina certos fazeres também não sabe ensinar.
Lembro-me de uma professora do quarto ano primário, Maristela, que se orgulhava muito de que os seus sapatos não acabavam nunca e de não ter dor nas costas. Explicava: "Sempre que der, pise primeiro na sola do pé e depois no calcanhar. Assim, pisar-se-ia com suavidade e elegância, dando menos trancos na ossatura". E ela explicou ainda que essa história de pisar no calcanhar era um vício do asfalto, pois na terra todos nós pisávamos instintivamente primeiro com a sola para não escorregar.
Quando um mestre explica, em vez de transmitir uma regra, nós aprendemos também algo sobre o porquê das coisas. Dona Maristela não só me deu os palpites de como andar como atribuo a ela não ter dor nas costas. Mostrando a diferença entre chão regular e irregular, ela me convenceu: imitar e copiar são aptidões indispensáveis na vida em sociedade, mas desconfiar e indagar também o são. Só pode ensinar a fazer quem sabe por que e como deve ser feito. A transmissão de jeitos dogmaticamente apresentados cheira a autoritarismo, de um lado, e a subserviência, de outro. Ensinando a aprender a fazer, injetamos liberdade e autonomia.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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