São Paulo, quinta-feira, 24 de novembro de 2005 |
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Outras idéias Anna Veronica Mautner Considerações sobre o bem-fazer
Existem algumas frases que passam de pai para filho, e a gente vai repetindo sem prestar atenção. Diz-se, por exemplo, que a maior herança que podemos deixar para nossos filhos é a educação.
Desconfio da assertiva inicial. Vejo, cada vez em maior número, pessoas que não souberam fazer bom uso da herança que lhes foi outorgada. Está aumentando, pelo menos nas grandes cidades, o número de pessoas que, apesar de terem tido educação formal de qualidade e família razoavelmente estruturada, não souberam aproveitar a infra-estrutura que receberam. Ao conceito de "educação" aglutinam-se títulos, diplomas e prêmios, que outorgam status. Hoje não basta conhecer. Há um verbo que está em falta, pelo menos na quantidade necessária, e que deveria fazer parte de qualquer processo de formação: fazer. E não basta fazer igual. É indispensável saber por que se faz assim. Há poucos dias, eu me vi às voltas com a vontade de ensinar um adulto, diplomado e laureado, a cozinhar legumes no vapor. Depois de lhe falar da existência de panelas apropriadas e da adaptação possível de uma peneira e tendo dito também que se poderia colocar nos legumes vários temperos, e isso tudo envolvido em papel-alumínio, achei que tinha ensinado. Imaginei que ele saberia que a função do papel-alumínio não era apenas manter o tempero e que o legume tinha de ser embrulhado para manter o gosto. A mim, parecia óbvio que, se for para colocar o legume desembrulhado no vapor, poderíamos colocá-lo dentro da água diretamente. Pois não é que ao laureado doutor não ocorreu que os nutrientes cairiam na água, iriam ralo abaixo e que, na peneira, só restariam fibras insossas? Dias depois, quando ele me contou que tinha posto os legumes na peneira bem em cima do bafo, deixando gosto e nutrientes escorrerem na água, tive vontade de designá-lo de pouco inteligente. Não podia fazer isso, pois ele é doutor. Será que é? Vai ver é um bom repetidor! No caso dos legumes, faltaram pensamento, questionamento e a dose exata de desconfiança. Ele não questionou se eu teria mandado colocar papel-alumínio só para complicar. De qualquer forma, no segundo encontro percebi que eu tinha errado ao imaginar que ele usaria a razão para uma coisa tão prosaica. Ouviu o que eu disse, simplificou e fez bobagem. Com certeza, ele não aprendeu a fazer, apenas vai fazendo sem prazer as tarefas do dia-a-dia e nunca será um grande cozinheiro. Na vida, cheia de ações prosaicas, banais, porém tão importantes para a sobrevivência, tropeçará muito e dependerá sempre de um sem-número de fazedores, aos quais não saberá comunicar de que jeito gosta de suas coisas. Quem não domina certos fazeres também não sabe ensinar. Lembro-me de uma professora do quarto ano primário, Maristela, que se orgulhava muito de que os seus sapatos não acabavam nunca e de não ter dor nas costas. Explicava: "Sempre que der, pise primeiro na sola do pé e depois no calcanhar. Assim, pisar-se-ia com suavidade e elegância, dando menos trancos na ossatura". E ela explicou ainda que essa história de pisar no calcanhar era um vício do asfalto, pois na terra todos nós pisávamos instintivamente primeiro com a sola para não escorregar. Quando um mestre explica, em vez de transmitir uma regra, nós aprendemos também algo sobre o porquê das coisas. Dona Maristela não só me deu os palpites de como andar como atribuo a ela não ter dor nas costas. Mostrando a diferença entre chão regular e irregular, ela me convenceu: imitar e copiar são aptidões indispensáveis na vida em sociedade, mas desconfiar e indagar também o são. Só pode ensinar a fazer quem sabe por que e como deve ser feito. A transmissão de jeitos dogmaticamente apresentados cheira a autoritarismo, de um lado, e a subserviência, de outro. Ensinando a aprender a fazer, injetamos liberdade e autonomia. ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) @ - amautner@uol.com.br Próximo Texto: Pergunte aqui Índice |
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