São Paulo, terça-feira, 25 de janeiro de 2011
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OUTRAS IDEIAS

ANNA VERONICA MAUTNER amautner@uol.com.br

Entroncamentodos tempos

No paraíso tropical, esqueço osh orrores da pós-modernidade, que é, para nós, o mar monstruoso dos antigos

SOB O SOL do sul da Bahia, no verão, não chove, e as nuvens são raras. O mar reluz entre a linha do horizonte e a linha torta formada pelas ondinhas que morrem na areia, a menos de dez metros de onde estou hipnotizada. Meu olhar fica fixo entre
essas duas linhas, para não perder nada da luz inebriante refletida pelo mar. Como sei que isso não é eterno -nuvens e tormentas acontecem-, ponho-me a devanear, para enriquecer minha memória com o que tenho agora, hoje, e que chamo de belo.
Dois riscos. Só dois, e neles encontro tanto deslumbramento! Por quê? Vamos fazer de conta que esse momento é um fim. Estou vivendo uma última vez. Assim, ponho-me a matutar. Penso no sonho dos antigos, quando içavam as velas na largada para o mar, cheio de mistérios e monstros.
Devaneio também sobre a ânsia desses homens de ver a linha do chão com o mar, depois de ficarem dias, meses no mar, sem norte visível. Sentada hoje, 2011, tenho em mim os sonhos daqueles tempos em que a natureza e o mar eram uma cornucópia de eventos incompreensíveis.
Essas ilusões milenares foram substituídas por sabedorias e tecnologias. Dá para imaginar que as lendas, na velha forma da fabulação individual ou coletiva, poderiam estar eliminadas, já que a ciência ocupou os espaços.
Aqui, na minha cabana de sapé, não pretendo mergulhar na pós-modernidade. Quero ficar em um "hoje" que é "ontem", quando tínhamos fé na ciência, que acabaria por explicar e ajudar a controlar tudo. Quando tudo parecia seguir esse caminho... Qual nada!... Depois de Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl, sabemos que estamos à mercê de forças que não controlamos e nem medimos, como na Antiguidade.
De novo, estamos à mercê de energias desconhecidas, aquecimento global, radiação e sei lá mais o quê. Isso é o pós-moderno. Os novos perigos dispensam a percepção humana. Fica tudo por conta de fios e maquinetas, que se pretendem aptos a medi-las. Quando vou ao paraíso tropical, fico em equilíbrio entre o antigo, o velho, o moderno e esqueço os horrores da pós-modernidade -para nós, o mar monstruoso dos antigos.
Na praia, nas férias, podemos nos deixar levar pela nostalgia da Antiguidade, tão rica em deuses e lendas.
Isso são férias. Na praia, não tem fio. A luz é do sol.
Imaginando que é a última vez, voltamos ao que de humano nos resta. Podemos pensar, refletir, sob o encanto da luz do sol. Essas são férias de humanos.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)



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