São Paulo, quinta-feira, 25 de março de 2004
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outras idéias

O simples choca! O brincar é supérfluo, o ter uma pessoa só para a criança é imprescindível. E mais um ser mimado e déspota é somado à sociedade

As brincadeiras de rua na escola

Thereza Soares Pagani ("Therezita")

Sempre brinquei muito na rua, em frente à minha casa ou em frente à casa da vovó. Era a hora de cadeiras irem também para as calçadas e, assim, com muita alegria e segurança, sob o olhar atento dos mais velhos, as brincadeiras começavam com crianças de todas as idades juntas -desde aquelas de um ano, se já soubessem andar, até as de 12 ou 14.
Era uma delícia. Talvez seja por isso que me sinto tão segura em só trabalhar em lugares aonde vão crianças de todas as idades, raças misturadas e sempre com a inclusão tão em moda hoje -e, para mim, sempre tão natural.
Fui criada num ambiente muito simples, porém com valores presentes, como obediência, horário e respeito aos mais velhos. Hoje eu sinto o privilégio de, com grande alegria e tranqüilidade, numa metrópole como São Paulo, poder passar essa vivência a crianças de até sete anos.
Não fico mais surpresa em ver pais, mestres de faculdade e visitantes de outros países se emocionarem ao viajarem no espaço/tempo de sua existência infantil. A surpresa! As exclamações: "Isso existe ainda?!". Com o tempo, vão relembrando cheiros, medos e sentimentos profundos que viveram. Alguns falam alto, choram e dizem: "É uma "catarse'".
Enquanto o adulto se refaz, a criança se motiva: começa a brincar, sua fisionomia muda e ela não quer ir embora. As crianças que chegam como "manequim de vitrine" e com babá de avental e roupa imaculada normalmente nem descem do colo, embora demonstrem vontade, jogando o corpo para se livrarem da proteção. Saem, na maioria das vezes, chorosas e infelizes. O simples choca! O brincar é supérfluo, o ter uma pessoa só para a criança é imprescindível. E mais um ser mimado e déspota é somado à sociedade.
A criança autônoma, independente, crítica, dá trabalho -e como! Porém é o trabalho que gera um ser humano lúdico, criativo, que sabe receber o primeiro "não" e sente que não será o último, que aprende a lidar com a frustração. Sabe também ganhar e partilhar com os que perdem, pois a competição para eles é a competição olímpica, da brincadeira, do jogo da vida. Essas crianças representam um oásis hoje em dia -e sofrem, mas sempre estão questionando e indo em frente, pois convivem com interrogações o tempo todo. Que bom não ser o dono da verdade, e sim o questionador criativo.
Por que levar as brincadeiras de rua para dentro das escolas? Porque é brincando que se aprende! Verdade das mais diretas e simples. Exemplos: cantar em rodas, dançar os folguedos do folclore, como congadas, bumba-meu-boi, reisado, pastoril, quadrilha, batuque, frevo, capoeira. Cantar sem se preocupar com a afinação; dançar sem se preocupar com a coreografia, mas cada um a seu modo, pelo prazer que vem de dentro e que embala e transforma.
Outras brincadeiras e estripulias da infância cheia de energia e ávida por espaço: o pegador, o esconde-esconde, o pique, o rabo do gato, a toca do coelho, o pega-bandeira, a barra-manteiga, a queimada, a amarelinha, a bola de gude, o jogo-da-velha, a mímica, a adivinhação, o maestro, a batatinha-frita, o seu-lobo-está-aí, o carrinho de rolimã, a forca, jogar pião, pular corda, rodar pneu, fazer pipa e soltar, ficar sem fazer nada, só observar.
Em escolas, creches, parques infantis e atuais Emeis, os recreacionistas, os professores, os auxiliares devem ter vocação, atitude que brota de dentro, e não fingir que gostam do que fazem para mostrar serviço e não perder o emprego. Acho que é uma covardia. E digo mais: covardia dupla e tripla. Primeiro, só se enganam. Segundo, como rendem muito pouco no que fazem, a criança, leal, profunda e transparente, capta essa atitude-modelo e não brinca. Terceiro, porque lesam a quem remunera -seja o Estado, o município ou uma entidade particular. Vamos aprender a trabalhar naquilo de que gostamos, naquilo em que nós nos realizamos, mesmo que o dinheiro seja pouco. A realização da missão bem cumprida traz energia para outros eventos não tão prazerosos. Vamos aprender a nos respeitar e a respeitar a criança indefesa para que amanhã seja um cidadão inteiro.
Repito: é do gesto simples que se constroem grandes mudanças.


THEREZA SOARES PAGANI ("Therezita") é educadora e diretora da Tearte, escola de educação infantil; e-mail: tepagani@uol.com.br


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