São Paulo, quinta-feira, 25 de abril de 2002
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outras idéias

gustavo ioschpe

Enquanto o mundo físico permanece relativamente inalterado, o humano complica-se cada vez mais

Cada vez mais sobre cada vez menos

"Um expert é alguém que sabe cada vez mais sobre cada vez menos", disse Nicholas Butler, educador norte-americano que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1931. Lembrei-me da frase quando recebi um e-mail de um médico que reclamava de artigo publicado neste espaço há um par de meses. O referido doutor dizia que o texto, ao falar sobre o uso abusivo de remédios como a Ritalina, estava equivocado. Sugeriu-me o bondoso alienista que, para corrigir meu erro, passasse uma tarde com uma criança hipercinética -"pentelho", na minha época- antes de dar opinião sobre o que este impostor que vos escreve patentemente desconhece.
Tanto a economia quanto a psicologia explicam a necessidade daqueles que devotaram muito de seu tempo a uma atividade de se insularem dos demais mortais e pretenderem que seu conhecimento é inacessível. O uso do jargão é um dos sintomas clássicos dessa anomalia -um passo a mais na distinção entre bacharéis e coitados.
Apesar da antipatia gerada por esse distanciamento, quero crer que ele é bom para a pesquisa científica na área das exatas (e o fato de que a maioria dos médicos não faz pesquisa, mas mantém o distanciamento, é apenas parte da patologia da profissão). Em áreas como química, física, biologia (e medicina), cada novo achado é um passo na solução das incógnitas e, consequentemente, no melhoramento de vidas. A quase veneração estendida aos especialistas é resultado dos ganhos práticos que eles obtêm, e esse progresso é razão fundamental da entronização da ciência na cultura moderna.
O efeito contraproducente dá-se quando se estende às ciências humanas o mesmo tratamento dispensado às exatas. O problema ocorre quando se enaltece a formação de cientistas sociais, políticos ou economistas que não sabem nada além de uma subárea de uma subespecialidade. Aqui, o movimento conducente à especialização é distinto: se, por um lado, há a curiosidade natural do pesquisador que quer descobrir o novo, por outro, há uma pressão do establishment. Primeiro, porque quem se concentra em uma questiúncula dificilmente consegue manter a noção do todo e, assim, questioná-lo ou mudá-lo. Segundo, porque a especialização leva à ortodoxia: dificilmente você conseguirá ler vinte "papers" mostrando que a abertura comercial é benéfica aos países pobres e continuar acreditando no contrário. Terceiro, porque especialização significa dispêndio de tempo, e a convivência no meio acadêmico dificulta o pensamento independente a todos que não os possuidores de espírito verdadeiramente combativo. O resultado acaba sendo a geração de muito pouco pensamento original e muita propaganda, travestida de ciência.
Eis a importância fundamental dessa aura conferida ao "expert": acreditamos que seu pensamento seja imparcial e desinteressado, pois transferimos a ele a mesma neutralidade ética imputada ao biólogo ou ao físico. O "expert" é mais eficaz em sua política justamente porque não notamos -nem imaginamos- que dele possa sair algo que não ciência.
Seria apenas deplorável, não fosse trágico. Pois, enquanto o mundo físico permanece relativamente inalterado, o humano complica-se cada vez mais. Hoje temos 2,8 bilhões de pessoas que vivem com menos de dois dólares por dia. A solução de seus problemas passa, necessariamente, por formulações que dependem de história, economia, política, sociologia, jurisprudência e várias outras áreas do conhecimento humano. Mas, à medida que o problema -e suas soluções- vão se tornando cada vez mais abrangentes, os especialistas vão ficando cada vez mais minimalistas, vão perdendo a visão global.
Olhamos para esses senhores na esperança de que resolvam nossos problemas, mas, ante cada novo questionamento, somos entupidos com uma barragem de jargões, fórmulas e modelos. Quando lhes pedimos que olhem para além de suas janelas e vejam o objeto de seus estudos -pessoas- e seu triste estado, não encontramos nada além do sorriso condescendente destinado aos importunos. Aliás, perdão: hipercinéticos.

GUSTAVO IOSCHPE, 25, faz mestrado em desenvolvimento econômico em Yale (EUA); e-mail: desembucha@uol.com.br


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