São Paulo, quinta-feira, 25 de maio de 2006
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Outras idéias

Dulce Critelli

Teia de relações

Faz parte da nossa mentalidade acreditar que quem sofre as conseqüências das nossas ações somos nós mesmos. Pensamos que, se ninguém souber o que fazemos, nossos atos não terão alcance. Mas a realidade se revela muito diferente. Um exemplo é o caso do funcionário que diz ter vendido aos advogados do PCC um CD com as medidas (sigilosas) que seriam tomadas em relação ao tráfico de armas.


[...] As conseqüências das nossas ações jamais recaem imediatamente sobre nós


Segundo sua própria declaração, quando dos ataques do PCC, motivados pelas informações do tal CD, o funcionário se perguntou se os acontecimentos teriam sido causados por ele. Como a maioria de nós, ele acreditava que seu gesto terminava com ele mesmo.
Ele não suspeitava que todos os atos de um homem estão inexoravelmente conectados aos atos dos outros. Nem que as conseqüências das nossas ações jamais recaem imediatamente sobre nós, porque elas primeiro atingem os outros e só retornam depois de um longo e imprevisível percurso.
Muitos podem pensar que o rapaz teve um grande azar. Ou que não foi esperto e deixou pistas demais. Mas a questão não está nem na sorte nem na competência. Vivemos numa teia de relações. Cada movimento nosso implica o movimento do todo. Cada palavra nossa replica em infinitos ouvidos. Porém, como raramente percebemos a rede em que estamos inseridos, acreditamos que agimos sempre sozinhos.
Nossos atos sempre provocam uma reação em cadeia. Basta que se faça um único gesto e todas as outras pedras do jogo caem, sem que seja possível interrompê-las. Esse funcionário é figura menor para o significado dos episódios que se sucederam e, embora tenha agido de acordo com uma imoralidade consentida, pode ter dado início a uma nova ordem de acontecimentos. Assim, o que assistimos em São Paulo foi uma seqüência de episódios decorrendo uns dos outros. A morte de um bombeiro; os órfãos de policiais mortos; o caos na cidade; o medo.
É da nossa cultura ignorar que agimos em conjunto e, portanto, pensar a responsabilidade de nossos atos como algo subjetivo e pessoal. No entanto, a natureza da responsabilidade é ética, moral e política. Responsabilidade é um compromisso com o mundo (que começa ao nosso redor, mas inclui o bairro, a cidade, o planeta) e com os outros (conhecidos e desconhecidos, os que vivem hoje e os que virão a este mundo mais tarde). A responsabilidade é um comprometimento com as condições que imprimimos e podemos imprimir no mundo em que, com outros, e não solitariamente, existimos.
Somos responsáveis pelo que fazemos, mais do que pelo que pensamos, sentimos e queremos. Só diante da repercussão de nossos gestos e palavras é que podemos dimensionar nossa responsabilidade e o destino dos nossos atos. E é aí que começa, de fato, a nossa própria biografia.
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

@ - dulcecritelli@existentia.com.br


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