São Paulo, quinta-feira, 25 de junho de 2009 |
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OUTRAS IDEIAS Dulce Critelli A natureza e as cidades
Às vezes, vivemos situações que atuam em nós por muito tempo. As emoções e sensações que ali experimentamos, as compreensões que tivemos reverberam e modificam alguma coisa em nós. Há alguns anos, em Fernando de Noronha, fiz um passeio de barco. Com o balanço e o som das águas me embalando, entretive-me contemplando a paisagem, os golfinhos que nos acompanhavam e... milagre. Senti minha mente se aquietar. Nunca mais esqueci o que é ter o pensamento silenciado. Recentemente, outra experiência decisiva. Também junto ao mar, num lugar de natureza exuberante: o Rio de Janeiro. Em dois dias, caminhei pela praia, percorri a cidade de carro, fui ao teatro e a livrarias, vi amigos. Também faço isso aqui, mas, lá, sempre encontrava um ponto de onde espiar alguma beleza estonteante. Quando a gente está envolvida pela beleza, parece que tudo está bem. Até me esqueci do problema da criminalidade. A beleza, o mar, a natureza dão calma. Tive a sensação de voltar à São Paulo dos anos 60 e 70, quando minha cidade, que amo tanto, ainda era tranquila. A filha de uma amiga, quando veio de Maceió para estudar, disse-me que era difícil se locomover aqui porque São Paulo não tinha frente. Uma cidade que tem mar tem frente. No Rio é assim. Entre o mar e as montanhas, a cidade tem frente e fundos. Ela nos oferece referências, não ficamos perdidos. Outra razão para aquela calma que senti, justo eu que me desoriento no meu bairro. O que mais ficou ecoando em mim, no entanto, foi aquela beleza natural exuberante me perseguindo. As construções não conseguiram escondê-la. As cidades têm a tendência de esconder o mundo natural sob os seus artefatos. Soterramos e encobrimos rios com avenidas, o asfalto dissimula a terra, os edifícios vedam o sol e as prováveis montanhas ao longe... Quando a construção das cidades toma conta de todo o ambiente, os artefatos artificializam o mundo. A questão é que a natureza é um colo de mãe inesgotável. Apenas ela é capaz de nos oferecer o sentimento de enraizamento necessário à vida. O artefato é a demonstração do poder do homem de refazer um mundo à sua imagem e semelhança. Todavia, pontes, casas, indústrias, computadores, móveis e automóveis, tudo se desgasta, quebra, é substituído. Todo artefato se desfaz. No meio de tal mutação, sentimo-nos também de passagem, sem vínculos e compromissos. Quase apátridas. Vivendo apenas em um mundo artificial, que camufla a natureza, ficamos esquecidos da perenidade desse solo original. Saber que o mundo já estava aí antes de nós e que permanecerá aí quando partirmos empresta à vida o sentimento de duração e de segurança. Sem ele, a existência jamais consegue avançar nem se simplificar. Mas, na presença do mundo natural, lembramos que nascemos e morremos. E nos lembramos de nos perguntarmos: o que, de fato, queremos e precisamos, enquanto vivemos? DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
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