São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2008
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AMBIENTE

Se essa rua fosse minha...

Tem gente assumindo que é e ocupando espaços públicos com árvores frutíferas, arbustos e ervas; veja dicas sobre o que deve ou não ser plantado

Marcelo Justo/Folha Imagem
Fernando Augusto Cardoso, 24, cuida de mudas que plantou em um terreno público na Vila Guilherme, zona norte de São Paulo

AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

Foi durante um passeio de bicicleta pelas ruas de Curitiba que dois amigos entraram em contato com uma forma diferente de interferir na paisagem urbana. O que encontraram parecia banal: um monte de plantas recém-arrancadas, provavelmente esperando a carona do caminhão de lixo. Encostaram as bicicletas, vasculharam as plantas e viram uma bromélia que parecia disposta a encarar mais um bom tempo de vida. Com a bromélia na garupa, pedalaram até encontrar um local adequado, onde a replantaram. Serviço feito, veio a sensação de que o ato tinha uma dose de anarquia e contestação.
Nascia a expressão "jardinagem libertária", que, ao longo deste ano, espalhou-se de Curitiba para outras cidades do país. A idéia é cada um plantar por conta própria sementes e mudas em ruas, praças, canteiros e terrenos baldios -a ação já foi comparada ao grafite e é alvo de críticas.
"Escolhemos esse nome porque, em primeiro lugar, não pedimos autorização para plantar a bromélia. Percebemos que cada um pode interagir criativamente com a cidade ou transferir essa liberdade para o poder público. Nossa idéia não é fazer uma ONG, formar um movimento, nada disso. É uma poética urbana", explica Goura Nataraj, 28, professor de ioga e membro do coletivo Interlux de arte livre, que propõe intervenções no espaço público.
As ações do grupo curitibano começaram a ser registradas num blog -um dos caminhos mais fáceis para propagar idéias e congregar pessoas. Com o atalho virtual, a jardinagem libertária alcançou Campo Grande, Rio de Janeiro e São Paulo, entre outras cidades.
Sem que eles soubessem, a proposta remetia a iniciativas parecidas de outros países. O ponto de encontro virtual é o site guerrillagardening.org, criado por Richard Reynolds para registrar suas investidas noturnas em um canteiro do prédio, no qual plantou lavanda, ciclâmen e dracena.
No livro "On Guerrilla Gardening" (sobre jardinagem de guerrilha, em português), lançado neste ano, Reynolds define a atividade como "o cultivo ilícito na terra de alguém", sem vinculá-la a nenhuma vertente ideológica. Os exemplos incluem ações como a de um jardineiro que plantou 3.400 mudas de maconha num terreno do empresário Rupert Murdoch e a de um grupo que plantava girassóis em Bruxelas e, no ano passado, criou o dia internacional da guerrilha girassol.
Essa diversidade é vista no Brasil: em Curitiba, as ações são feitas por artistas plásticos, em Campo Grande, pelos vegetarianos, e, no Rio, por pessoas ligadas a ações pró-moradia.
Para a estudante Glaucia Almeida Marinho, 23, que mora numa ocupação de sem-tetos no Rio, o que une as duas áreas é a preocupação com o espaço urbano. Ela conheceu a idéia de jardinagem libertária em conversas na faculdade e, no início deste ano, juntou-se a amigos em um mutirão na praça do Cajueiro, no centro da cidade.
"Quando os moradores viram que a gente estava limpando e plantando, resolveram participar", lembra. Ao todo, cerca de 30 pessoas ajudaram no plantio naquele dia, e mais dois mutirões foram feitos. A praça do Cajueiro ganhou pés de café, de caqui e de manga e ervas para chá. Agora, a idéia é plantar leguminosas -quando a chuva der uma trégua.
A previsão, diz Glaucia, é ir além do plantio e estimular o uso do espaço pelos moradores. "A pracinha era totalmente suja, mas agora você não vê mais lixo lá. As pessoas viram que aquele espaço traz bem-estar e passaram a cuidar dele", conta.
Morador da Vila Guilherme, na zona norte de São Paulo, o técnico em contabilidade Fernando Augusto Cardoso, 24, também percebeu uma mudança em seus vizinhos depois que começou a cultivar flores num terreno próximo à sua casa. Ora uma senhora se aproximava para lhe dar dicas sobre as funções medicinais de uma planta, ora um vizinho prometia vigiar as mudas para ninguém mexer. Outros ofereceram a água da rega.
"A melhor parte é que essas pessoas passaram a me olhar no olho, a sentir liberdade para conversar, trocar informações e experiências, desabafar, quebrar o clima de competição e de isolamento que as grades, muros e empregos criam. Isso, para mim, é realmente revolucionário", conta Fernando.
Assim como o curitibano Goura e o britânico Reynolds, Fernando começou a cultivar plantas em locais públicos antes de entrar em contato com a idéia de jardinagem de guerrilha. "Sou anarquista e punk e essa outra relação com o mundo, com as pessoas e com a sua comunidade sempre estiveram dentro de mim", conta ele, que ajudou a formar um grupo que reúne adeptos da prática.

Técnica
Para Silvio Macedo, professor de paisagismo da FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), a idéia é romântica, mas tem problemas. Um risco é o de que sejam cultivadas plantas onde não é necessário ou indicado. "Posso sentir falta de árvores na minha rua. Mas, se a calçada é estreita, não dá para plantar uma árvore", diz. A manutenção é outro aspecto importante. "Muitas morrem porque as mudas são plantadas e abandonadas. Sem manutenção, trata-se de um assassinato de plantas."
Francine Sakata, diretora da Abap (Associação Brasileira de Arquitetos Paisagistas), também considera a iniciativa louvável, mas ressalta que a técnica e o planejamento são importantes para que essas ações não gerem mais problemas do que benefícios para a comunidade.
Ela cita como exemplo o plantio de arbustos. "Se eles forem cheios, atrapalham a visão do local, que pode ficar mais inseguro", afirma a arquiteta, que aprova a adoção de praças pela sociedade, mas sugere que as pessoas se apóiem em profissionais com habilidade técnica para fazer a intervenção.
Além de aliar a questão estética à inserção do jardim no entorno, respeitando os acessos às vias, os profissionais valorizam a biodiversidade e a relação da flora com a fauna (como os pássaros). Sakata cita como problema a presença excessiva do cipreste -uma árvore que muita gente tem em vaso e que acaba sendo transplantada para praças quando cresce. "Ela cresce muito, tomando espaço de outras árvores que poderiam ser mais interessantes para a biodiversidade."
A principal vantagem das iniciativas individuais, afirma, é o valor que a própria comunidade passa a dar à vegetação. "Tem gente que se incomoda com as flores e com as folhas que caem no chão. Essa tomada de consciência sobre a importância das árvores é o mais interessante porque são as pessoas que atribuem o valor e definem se o melhor é o espaço para estacionar o carro ou a árvore."

[!] PODA É CRIME
Se plantar uma árvore é permitido, podá-la sem autorização configura CRIME AMBIENTAL, de acordo com a legislação federal. Apenas bombeiros, em OCASIÕES DE EMERGÊNCIA, podem fazer a poda sem a permissão. São consideradas árvores as plantas que têm tronco com 5 cm de diâmetro a 1,3 m do chão.


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