São Paulo, quinta-feira, 26 de junho de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp


Americanamente amigos


[...] OS AMERICANOS CRIAM FAMÍLIAS DE AMIGOS, O QUE SE REFLETE EM SÉRIES COMO "FRIENDS" E "SEX AND THE CITY"; NO BRASIL, "A GRANDE FAMÍLIA" REFLETE A PRIMAZIA DO PARENTESCO

Fico na defensiva quando brasileiros que moraram nos EUA descrevem meus conterrâneos como frios e antipáticos. Por quê? Pode até ter um fundo de verdade nessa generalização. Mas ela ignora a complexidade desta sociedade diversificada e multicultural, na qual nem todos se encaixam nesse modelo. E não leva em conta que amizade é difícil de achar em qualquer cultura, especialmente se você é de fora.
Por isso, muitos brasileiros que moram nos EUA inicialmente buscam colônias de compatriotas para encontrar carinho e intimidade. É mais fácil do que conquistar meus conterrâneos, um processo que exige tempo e a capacidade de se americanizar -uma proposta assustadora.
É duro se ajustar a um país polarizado racialmente, cujo governo, depois do 11 de Setembro, fomentou um clima de suspeita contra estrangeiros. Mas foi duro me ajustar ao Rio. Também entrei na colônia de compatriotas, que era mais fácil do que conquistar os cariocas. Mais tarde, virei um membro periférico de uma turma da praia. Meus camaradas da praia me tornaram menos solitário.
E o cenário para a minha solidão era mais agradável do que seu similar nos EUA: um sombrio balcão de bar. Mas não eram pessoas a quem eu contaria tudo ou com quem eu pudesse contar. Levei anos para me abrasileirar o bastante para criar laços mais fortes.
Os laços familiares brasileiros, a cola desta sociedade, são tão fortes que grandes amizades se tornam secundárias. Mas, para solteiros americanos, essas amizades são prioritárias. Por quê? Quando, aos 18 anos, eles saem de casa para morar longe, na universidade, os laços familiares começam a se desfazer. A maioria só vive em casa durante o tempo em que vê os pais como adversários, e não aliados.
Depois de formados, os americanos que não casam criam famílias de amigos, o que se reflete em séries de TV como "Seinfeld", "Friends" e "Sex and the City". Ou encontram um melhor amigo, uma aliança rara no Brasil, onde "A Grande Família" reflete a primazia do parentesco.
Os americanos chamam a grande amizade de "relação significativa" para realçar sua importância. Dois compatriotas que conheço há 35 anos são como irmãos e as confidências que dividimos cimentam nossa ligação. Mas, já que os brasileiros, como outros povos, julgam outras sociedades por costumes que lhes são familiares, qualquer cultura que evite abraços e beijos parece fria.
Cada sociedade, entretanto, expressa calor humano de modo diverso. O antropólogo Roberto DaMatta ignora esse fato quando escreve que, nos EUA, "intimidade e calor humano fazem muita falta na vida social".
Para ele, a pletora de "talk shows" e livros de memórias, em que americanos confessam crises pessoais, resgata a intimidade que falta a uma sociedade impessoal. Discordo. Confissões na mídia são uma extensão da intimidade já presente numa sociedade cheia de laços fraternais. Elas proliferam porque, nessa cultura altamente polarizada, até quem tem amigões precisa desabafar com quem escute. Isso diminui a dor.


MICHAEL KEPP , jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br



Leia na próxima semana a coluna de Anna Veronica Mautner


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