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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003
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s.o.s família - rosely sayão

Pai que não tem persistência deve encontrá-la

Criança merece ser tratada como criança que é e com respeito e dignidade. Infelizmente, não tem sido assim para muitas delas. E nem vou falar a respeito das que precisam trabalhar para ajudar a família, das que não têm o que comer, das que não podem ir à escola nem têm onde morar, das que são tratadas com violência pela família e pela sociedade etc. Vou falar das que fazem parte de um grupo especial: das que têm pai e mãe, casa e conforto, brinquedos e oportunidades para brincar, entre outras coisas, mas que, frequentemente, são tratadas ora como adultos que não são, ora como nenês que já não são mais.
Basta observar bem o que acontece no espaço público quando pais e mães convivem com seus filhos para ver o quanto se equivocam os adultos quando se relacionam com as crianças.
Lembro-me, por exemplo, do último fim de semana em que passei por um local de parada em uma estrada onde muitas famílias aguardavam a chuva diminuir para seguir viagem. Uma delas, composta por mãe, pai e uma filha de uns quatro anos, tomava um lanche. Não sei o que a garotinha aprontou, mas o que vi foi o pai dizer a ela algo assim: "Minha filha, você precisa ter consciência de que isso não pode acontecer de novo. Eu já estou perdendo a paciência. Você pensa que sou o quê? Quantas vezes você quer que eu diga a mesma coisa? Assim não dá para a gente viver bem. Agora, está na sua mão: você escolhe se quer viver bem com a gente ou não".
Olhei para a garota, e ela ouvia o pai com a maior atenção, olho lacrimejando, mas sem chorar, o que deixava claro que ela entendia muito bem que estava levando uma bronca.
Criança pequena é esperta o suficiente para entender muito bem o conteúdo da maior parte do que os pais lhe dizem. O que a filha de quatro anos entendeu do que o pai lhe disse foi direto ao ponto: ela ficou com receio de perder o amor dele. E isso é o suficiente para fazer com que ela procure não repetir a mesma coisa. Pelo menos, não nos próximos minutos, horas ou até dias. E, então, pronto: a mágica acaba porque a criança esquece ou releva o que o pai disse depois de um certo período.
Agora, exigir que a criança se responsabilize por suas atitudes, como se isso fosse uma escolha, uma decisão, é tratá-la como adulto. Aliás, é bom lembrar que nem sempre os próprios adultos se comportam assim, não é verdade?
Do mesmo modo, trata-se criança como adulto quando se deixam nas mãos dela determinadas responsabilidades. Como bem lembrou um leitor em uma carta: os pais devem delegar aos filhos pequenos tarefas, não responsabilidade. Isso é coisa de gente grande.
Criança precisa, sim, receber limites, levar bronca, ser corrigida segundo o modelo da família à qual pertence. Aliás, creio que nunca ninguém defendeu o contrário disso. A questão, portanto, não é o que fazer com a criança, mas como.
A fórmula é simples: criança precisa receber lições adequadas a crianças para que possa aprender. Mas a prática não é tão simples assim, e um dos motivos é que os adultos têm ânsia de que os filhos aprendam logo para que eles possam se ver livres de sua responsabilidade de educar.
É bom lembrar e relembrar: o processo educativo de responsabilidade dos pais só termina quando o filho se torna apto a se responsabilizar por sua vida, e isso só acontece lá pelo final da adolescência. Senhores pais: paciência, insistência e persistência são qualidades que quem não tem precisa arranjar. E quem acredita que não tem como conseguir praticar essas características, melhor pensar bem antes de decidir ter filhos.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo é Sexo" (ed. Companhia das Letras); e-mail: roselys@uol.com.br


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