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São Paulo, quinta-feira, 27 de fevereiro de 2003
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outras idéias - betty milan

"Queiram ou não, eles vão ter de nos engolir." Ao ouvir isso, lembro que a garota era mulata. Concluo que a senhora veio da Rocinha e está se vingando

Quem sabe se calar vive melhor

Leblon no domingo. O dia é de sol, e eu vou à praia. Passo antes no jornaleiro e compro todos os jornais de São Paulo e do Rio. Quero passar a manhã inteira lendo.
Alugo uma cadeira e me sento. Uma golfada de areia no ombro. De onde veio? Da mão da menina que brinca atirando areia na outra. Tão linda quanto sapeca. "Por favor, garota, vá brincar ali. A praia é grande. Tem lugar para todo mundo."
Digo isso convencida de que estou certa. A mãe da menina se apresenta gritando: "A mãe dela sou eu". "Bem, minha senhora, então, por favor diga à sua filha que há..."
A mulher me interrompe, gritando: " A mãe sou eu".
Fazer o que diante do convite à briga? Fico calada, mas não consigo ler. Fecho os olhos e penso no que aconteceu. Eu me pergunto por que a mãe deseduca a menina, por que me desautoriza em vez de dar limites à filha. A resposta não tarda, pois a senhora comenta com sua amiga: "Queiram ou não, eles vão ter de nos engolir". Ao ouvir isso, lembro que a garota era mulata. Concluo que a senhora veio da Rocinha e está se vingando. Dizer o quê? Nada, claro. Adianta explicar a quem não quer ouvir que eu estou torcendo pela regularização fundiária das favelas? Que eu estou a favor, e não contra?
Continuo de olhos fechados até ouvir um "Deus lhe pague" repetido como uma ladainha. Abro os olhos e vejo uma senhora já bem idosa que estende a mão para mim. Dou a ela três reais. "Deus é misericordioso", diz a senhora, antes de contar que a chuva levou o seu barraco, porém, "graças ao pai do céu", não levou o neto. Vontade de chorar. Menos por causa da história do barraco -um filme de terror que passa todo ano na televisão- do que pela resignação infinita da mulher.
Conto isso a uma conhecida, e ela me pergunta: "Mas, afinal, o que é que você quer? De uma você se queixa porque ela é beligerante. Da outra, porque é resignada".
Não quero a beligerância de uma nem a resignação da outra, tampouco a minha irritação. Quero olhar a pobreza no olho para saber como devo agir diante da mãe da Rocinha. Ela não é uma igual, e só a suposição de que ela o é justificaria a raiva. O injustiçado é primeiro um injustiçado, e é preciso levar isso em conta quando o ressentimento dele aflora.
Ou seja, reconhecer o erro das gerações passadas e, ao mesmo tempo, não se identificar com elas, não assumir a culpa, não vestir a carapuça. A culpa das outras gerações é delas, e só seremos culpados se não formos favoráveis agora à justiça e à paz social.
Ser favorável significa aderir às reformas e ainda ficar quieto -para não aguçar a crise- quando o silêncio se impõe. Ser um pacificador cotidianamente. Com isso, o agressor pode perceber que o verdadeiro destinatário do ressentimento dele não é você.


BETTY MILAN é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" (ed. Record), entre outros


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