São Paulo, quinta-feira, 27 de agosto de 2009
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FAMÍLIA

Irmãos coragem

Divididos entre a preocupação e o ciúme, irmãos de crianças doentes também devem receber atenção, afirmam novos estudos


PARTICIPAÇÃO E CIÚMES
Ana Carolina de Melo, 7, fazia companhia no hospital para a irmã gêmea, Ana Clara, mas, segundo a mãe, tentava chamar a atenção em alguns momentos


FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO

Uma criança acreditava que o hospital é um lugar com pessoas malvadas, onde os pacientes apanham. Outra achava que é como um parque de diversões, onde os internados ganham presentes. Uma terceira estava convicta de que era responsável pelo tumor na perna da irmã.
As histórias acima são reais e aconteceram com irmãos de pacientes com doenças crônicas. Confrontados com grandes mudanças na rotina e com a súbita concentração do foco familiar no irmão que exige cuidados médicos, eles acabam relegados a segundo plano e, diante da falta de informação sobre o que está acontecendo na família, criam fantasias como essas.
No primeiro caso, o menino observava o irmão voltar do hospital cansado e com mal-estar, após passar pela quimioterapia. No segundo, o irmão voltava do tratamento com presentes recebidos de voluntários e contando sobre as atividades lúdicas das quais participara. No terceiro, a criança tinha batido na perna da irmã com um carrinho de fricção enquanto brincava, e o sentimento de culpa só foi dirimido após os pais explicarem o que é câncer.
Se até pouco tempo atrás o foco dos estudos eram sempre os pacientes pediátricos, hoje cada vez mais cientistas se debruçam sobre as percepções e o bem-estar dos irmãos.
Pesquisadores do Hospital A.C.Camargo, por exemplo, acabam de finalizar um estudo com cem crianças de sete a 12 anos, 50 pacientes e seus irmãos. Ao avaliarem, com um questionário, a qualidade de vida de cada um deles, descobriram que a dos irmãos saudáveis é pior do que a do próprio doente. Enquanto 24% dos pacientes relataram qualidade de vida insatisfatória, 70% das crianças saudáveis disseram o mesmo.
Também foi visto que, quando questionados sobre o que os deixava felizes ou infelizes, os irmãos saudáveis citaram com frequência situações relacionadas ao irmão doente: quando ele está internado, quando volta do hospital, entre outros. "Eles põem as necessidades dos irmãos doentes em primeiro lugar", diz Beatriz Marques da Cunha, aluna de enfermagem da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e bolsista de iniciação científica do A.C.Camargo, autora da pesquisa.
Segundo Andrea Kurashima, orientadora da pós-graduação em enfermagem do A.C.Camargo, apesar de à primeira vista parecer que a pior qualidade de vida será a do irmão doente, a realidade é outra. "Quando vemos o que acontece com a família de alguém diagnosticado com câncer, fica claro o porquê desse resultado."
A primeira coisa que muda é a rotina. Um dos pais -geralmente a mãe- tem que permanecer no hospital e pode se afastar dos outros filhos. "Muitos precisam deixar as crianças com vizinhos ou parentes.
Quando são de outra cidade, ficam meses sem ver o resto da família. Alguns param de trabalhar, o que traz um impacto financeiro", enumera a psicóloga Cláudia Pedrosa, doutoranda da USP (Universidade de São Paulo). Ela é autora do livro infantil "João e Seu Irmão" (editado por Fapesp, Gaac e Abraccia), que conta a história de uma criança que tem um irmão com câncer e é distribuído gratuitamente no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
Pedrosa lembra que os filhos saudáveis podem ainda adquirir novas responsabilidades, especialmente em famílias com baixo nível socioeconômico. "Muitos têm que limpar a casa, tomar conta dos irmãos menores. E precisam ajudar a cuidar do irmão doente. Por tudo isso, amadurecem mais cedo."

Sentimentos ambíguos
O fato de a criança saudável entender que o irmão doente precisa de cuidados não impede que sinta ciúmes. "Ele tem as necessidades de qualquer criança. Preocupa-se com o irmão, mas fica revoltado com a mudança do foco da atenção", diz Kurashima.
Aline Cavicchioli, enfermeira da USP de Ribeirão Preto que estudou irmãos de crianças com câncer, conta que esse ciúme é despertado com frequência quando o paciente chega do hospital com presentes. "O irmão que está em casa pensa que ele estava num lugar legal, com a mãe, se divertindo. Enquanto isso, ele fica sozinho, sem ninguém para lhe dar atenção. É difícil lidar com isso."
Nem sempre esse ciúme é manifestado de forma explícita, observa Andrea Dórea, psicóloga responsável pela unidade de cardiopediatria do InCor (Instituto do Coração do HC de São Paulo), que desenvolve uma pesquisa sobre irmãos de crianças cardiopatas. "Eles se mostram compreensivos. Mas podem, por exemplo, não querer abraçar os pais, por se sentirem rejeitados por eles."
Numa das vezes em que seu irmão foi internado, Gabriele dos Santos, 7, disse à mãe, a dona de casa Severina dos Santos, 38, que achava que ela não a amava mais. Os constantes cuidados com Gabriel, 2, que nasceu com uma má-formação no coração, obrigavam Severina a ficar no hospital por até três meses seguidos. "Ela sentia minha falta, chorava muito, não almoçava", conta a mãe.
Foi assim principalmente logo após o diagnóstico do menino. De fato, estudos mostram que os dois primeiros meses de convivência com a doença são os piores para toda a família. Hoje, Gabriele não liga mais. "É muito esperta, entende tudo, se conformou", diz Severina.
O irmão saudável também pode ficar agressivo e começar a ter problemas na escola por não conseguir se concentrar, diz Aline Cavicchioli. "Vi esse desfecho com frequência na minha pesquisa."
Pode, ainda, apresentar sintomas físicos -não raro, os mesmos que o irmão doente sente. "Ele pode reclamar de problemas gástricos, voltar a fazer xixi na cama. Tem criança que chega a ser investigada pelo médico", diz Cláudia Pedrosa.
No Hospital A. C. Camargo, a mãe de um menino com linfoma vivia reclamando de que seu outro filho, saudável, tentava se machucar constantemente para poder ser levado ao hospital.
Irmã gêmea de Ana Clara de Melo, 7, que se recupera de um osteossarcoma (câncer nos ossos) no braço direito, Ana Carolina costumava ser compreensiva com a doença, mas, em alguns momentos, não conseguia disfarçar um certo ciúme. "Ela fazia de tudo para chamar a atenção. Imitava cachorro, fingia que estava com dor no braço. Cada dia inventava uma dor nova. Uma vez, ela disse que, se ficasse doente, todo mundo iria gostar mais dela", lembra a mãe, a dona de casa Tarsila Heck de Melo, 25.
Era ela que ficava com Ana Clara no hospital durante as internações. Ana Carolina ficava com o pai ou na casa da avó.
Tarsila conta que fez de tudo para que a filha não se sentisse relegada -preferiu que ela dormisse na própria casa, por exemplo, em vez de passar a noite na casa da avó, para não sentir tanto as mudanças. "Mas, por mais que a gente tentasse, ela percebia que o foco não estava mais nela. Todo mundo que chegava em casa perguntava sobre a Ana Clara. Era inevitável", diz Tarsila.
A dona de casa procurou envolver Ana Carolina no tratamento de Ana Clara. "Explicava tudo para as duas. A Ana Carolina nos acompanhou a várias consultas, chegou a dormir no hospital porque tinha curiosidade de saber como era."

Envolvimento
De fato, já que não é possível tirar o foco da criança doente, deixar que o filho saudável participe do tratamento do irmão é uma dica unânime dos especialistas para minimizar os problemas. Com a intenção de poupar os filhos de informações difíceis, muitos pais acabam isolando a criança saudável, mas é pior para ela.
"A imaginação da criança é muito fértil. Se a gente esconder as coisas dela, ela pode formar uma imagem na cabeça pior do que a própria realidade", diz Kurashima.
Achar que o câncer é contagioso ou sentir culpa pela doença do irmão são algumas fantasias comuns. Andrea Dórea, do InCor, acrescenta que as crianças costumam ficar muito impressionadas com o aparato hospitalar -o cateter, a agulha, a dor, a cirurgia, as cicatrizes- e que esclarecer as dúvidas delas ajuda a diminuir a angústia. "Elas querem conhecer o ambiente em que o irmão está, participar do processo."
O envolvimento do irmão saudável no tratamento também faz bem para o próprio paciente. "Ele fica isolado do ambiente familiar, e o convívio com o irmão traz aconchego", diz Dórea.
Cientes desses benefícios, alguns hospitais que antes não permitiam a entrada de crianças nos horários de visita hoje deixam que elas entrem ao menos no fim de semana. No exterior, há centros médicos que têm, inclusive, serviços específicos para lidar com os irmãos dos pacientes mirins.
Na hora de conversar com a criança, a recomendação é adaptar as informações à idade e à personalidade dela. Responder ao que ela pergunta com sinceridade, mas numa linguagem que ela compreenda e que não a sobrecarregue, é o ideal. Livros e filmes podem ser úteis nessa hora. Se os pais tiverem dificuldade, podem pedir ajuda à equipe do hospital.

União
A doença não gera apenas coisas ruins: pode trazer também aspectos positivos. É frequente, por exemplo, que a criança saudável desenvolva um espírito protetor em relação ao irmão doente. Na escola, muitas tomam conta para que os colegas não "tirem sarro" do paciente por estar careca ou abatido. Eles também passam a ficar atentos aos sinais dados pelo irmão para saber se está bem e gostam de ajudar nos cuidados com ele.
É o que acontece com Beatriz Cieto, 10, irmã de Luiza, 7, que teve um melanoma (câncer de pele) aos quatro anos. Na época do tratamento, ela buscava tudo o que a irmã pedia e a ajudava a colocar a meia elástica, entre outras tarefas.
Hoje, patrulha a mãe para que não se esqueça de passar o protetor solar na menina. "O médico falou numa consulta em que ela estava que a Luiza não podia se expor muito ao sol. Agora ela sempre me cobra isso. É preocupada com a irmã", conta a dentista Márcia Cristina Ribeiro, 40.
A família também costuma ficar mais unida e a cumplicidade entre seus membros pode aumentar. Aline Cavicchioli, da USP de Ribeirão Preto, conta, por exemplo, a história de um menino que raspou a cabeça para ficar igual ao irmão doente, que perdeu cabelo devido à quimioterapia. Outro frequentava a escola em dois períodos para ajudar o irmão a copiar a matéria, pois o tratamento havia deixado sequelas em seu desenvolvimento motor.
"As famílias relatam com frequência que, num momento delicado como esse, recebem muita ajuda de amigos e conhecidos e que a união entre eles cresce na dificuldade."


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O FATO DE A CRIANÇA SAUDÁVEL ENTENDER QUE O IRMÃO DOENTE PRECISA DE CUIDADOS NÃO IMPEDE QUE ELA SINTA CIÚMES

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COM A INTENÇÃO DE POUPAR OS FILHOS DE INFORMAÇÕES DIFÍCEIS, MUITOS PAIS ACABAM ISOLANDO A CRIANÇA SAUDÁVEL, MAS É PIOR PARA ELA





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