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São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2003
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outras idéias - dulce critelli

Pode parecer contraditório, mas, quanto mais isolados vivemos uns dos outros, mais vamos perdendo o domínio de nossos atos

Ainda quero a vida cor-de-rosa

Ainda quero a vida cor-de-rosa, mas ela anda vermelha. Vermelho-sangue. Nos anos 80 (só 20 anos passados!), ainda se andava pelas ruas. Alguma atenção com bolsas e carteiras -ou pouco mais. Hoje, pequenos atrasos já prenunciam um possível sequestro ou um homicídio.
Pela cidade, nossos olhos não procuram uma beleza gratuita qualquer, um rosto qualquer conhecido, mas personagens suspeitos e gestos furtivos. Olhamos para a cidade, para as pessoas da cidade, por pura precaução. Uma intenção de defesa.
Os lugares românticos, as paisagens bucólicas, as ruas calmas, os parques tranquilos hoje são só ameaças. Qualquer lugar é o lugar do perigo.
A nossa violência. De onde ela vem?
Ela não é apenas um problema da economia nem só um caso de polícia. Talvez seja o testemunho da falência da nossa ética, dos nossos valores e a vitória do individualismo.
Temos acreditado que "cada um é por si", que "cada qual cuida de sua própria vida". Que cada um vence sozinho e se desgraça sozinho e não se deve interferir na vida dos outros -ou que "ninguém tem nada a ver com isso".
A vida moderna é a vida dos homens isolados uns dos outros, que vivem cada vez mais sós e agem solitariamente.
Nossa tendência é a de recusar o convívio numa comunidade, a proximidade com vizinhos, colegas de trabalho, familiares, porque vemos nesse convívio apenas seu caráter negativo: o da intromissão. Esquecemos, assim, que uma comunidade também nos dá respaldo e proteção. Recusando o convívio numa comunidade, ficamos sem ter a quem recorrer nas necessidades, com quem compartilhar e defender sonhos e princípios, com quem rir nem com quem fazer acordos que nos garantam uma vida e um ambiente que nos satisfaçam.
Sem contar que é para uma comunidade que nossas histórias pessoais e nossas tradições fazem sentido e se conservam. Ela é a memória de nossa presença no mundo. Ela nos dá o valor e o significado de nossas ações, de nossos sentimentos e de nossos pensamentos. Nenhum ser humano pode se desenvolver e formar seu caráter sem se mirar no exemplo daqueles com quem convive e sem receber deles críticas e elogios. Assim crescemos para o bem e para o mal.
No enfrentamento do controle e da vigilância que o convívio em comunidade exerce sobre nós é que vamos treinando nossa autonomia e nossa responsabilidade. Pode parecer contraditório, mas, quanto mais isolados vivemos uns dos outros, mais vamos perdendo o domínio de nossos atos. Perdemos a noção da distância necessária entre nossos desejos e sua realização. Sem limites e proibições, todo "querer é poder". Tudo fica lícito, inclusive nossos instintos e nossas inclinações mais brutais.
É o "querer ter e realizar o que se quer a qualquer preço e do modo mais rápido" que usa a violência como sua principal arma. Ela parece ser sem disputas. Sem discordâncias. Sem contratempos e fracassos. Usando a violência, não temos que nos expor, nem explicar, nem tentar convencer o outro do que se quer e precisa.
A violência elimina tudo o que impede e estorva. Destruir e matar é sua lei e sua lógica. É uma regra que vale para os bandidos, mas também para nós e para nossos filhos. É a lógica dos videogames, dos filmes de ação, das ideologias, do terrorismo, da atuação dos chefes políticos mais proeminentes.
Não acredito que esse jeito de viver não possa ser transformado. Não acredito que sejamos agora apenas impotentes e nada mais. Não acredito que tenhamos perdido nossa capacidade de conversar e de fazer acordos.
Ainda acredito que seja possível conviver com conhecidos e desconhecidos e confiar.


DULCE CRITELLI, professora de filosofia da PUC-SP, é autora dos livros "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana; e-mail: dulcecritelli@existentia-br.com


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