São Paulo, quinta-feira, 27 de novembro de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Dulce Critelli

Alma insondável


[...] É IMPRESSIONANTE O QUE NOS OCORRE QUANDO FAZEMOS O QUE A ALMA QUER; E, QUANDO NÃO A OUVIMOS, ELA NOS PREGA PEÇAS

A vida é surpreendente, e a alma, insondável. Há uns dois meses, num ato imprevisto e impensado, comprei um teclado (um arranjador, na verdade, como o vendedor fez questão de distinguir). Ele tem uma orquestra inteira à disposição, vozes humanas, muitos estilos musicais. Sons perfeitos.
Tocar esse instrumento é muito diferente de tocar o piano que me acompanha desde meus sete anos e que há muito está calado no seu canto. E não sei bem se é por essa profusão de possibilidades que ele permite, mas o fato é que tenho me aventurado pelo universo da música e, especialmente, pelas veredas da composição.
Tinha 16 anos quando completei o curso do conservatório e o diretor me dizia para me dedicar à carreira. Mas eu não tinha esse talento, nem o desejo de passar quase todo o meu dia nesse empenho solitário. Queria era conversar com as pessoas, explorar o mundo e, se tivesse que optar por algo que me exigisse longos períodos a sós comigo mesma, certamente elegeria as palavras.
Foi a escolha que fiz, mas não exatamente como pretendia.
Acabei por estudar filosofia, e as palavras com que me ocupei foram todas limitadas pelas cercas desse saber. Quando iniciei a faculdade de filosofia, pensava que ela seria apenas um meio para outro fim, um recurso para compreender melhor a existência humana e, aí sim, escrever literatura de ficção. Mas gostei muito da filosofia e construí com ela minha carreira.
Do fundo do meu coração, acredito, como Sócrates, que "uma vida sem reflexão não vale a pena". Mas não posso fechar os olhos para o fato de que a filosofia também me fez ficar séria demais. Hannah Arendt diz que o humor dos filósofos é a melancolia, e acho que ela está certa, pois o pensamento, na filosofia, segura-se no corrimão do método. Ele pode descobrir nexos e significados ainda não vistos, mas não pode inventar nenhuma nova realidade.
Por mais prazeroso que seja, filosofar é um prazer seguro, que caminha sobre solos estáveis. Hegel dizia que o pensamento se debruça sobre os acontecimentos já concluídos.
O pensamento olha para o que já foi. O passado é o seu lugar.
Daí que, com aquilo que ainda não é, ele não pode lidar. Este é o limite da filosofia: ela compreende, mas não cria.
Quando comprei o teclado, minha necessidade antiga de criar voltou à tona. Ou, talvez, tenha sido a minha alma, que reprimi sem me dar conta, que me empurrou para essa compra.
Tenho andado em ebulição.
Memórias se destamparam, caminhos se abriram. Tenho entrado em contato com meus mistérios, com sonhos esquecidos... Tenho sido levada a me refazer em minha identidade.
Respiro melhor, sinto-me mais disposta, durmo melhor.
É impressionante o que nos ocorre quando fazemos o que a alma quer. E, quando não a ouvimos, ela nos prega peças.
A vida recomeça, acho, sempre inesperadamente. Somos insondáveis, tanto quanto são insondáveis os nossos destinos.


DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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